Carlos Cardoso Aveline
Uma velha fábula indiana conta que, há milhares de anos, vivia em um templo abandonado uma grande cobra venenosa. Seu nome era Naga. Em geral, Naga tinha bons sentimentos, mas despertava terror nos habitantes da aldeia próxima porque – quando incomodada – atacava as pessoas.
Certo dia, um sábio desconhecido apareceu misteriosamente no local. Sentou-se junto ao templo e chamou Naga para uma conversa. Disse-lhe que a vida é, na verdade, uma grande escola espiritual, e que aprendemos o tempo todo, mesmo quando não temos consciência disso. “Mas o aprendizado é muito mais rápido ― e muito mais difícil ― quando fazemos um esforço consciente por iniciativa própria”, acrescentou.
A consciência de Naga se expandiu. O animal viu a luz da sabedoria, e disse que desejava trilhar o caminho do esforço consciente. O instrutor mencionou então duas condições básicas para esse tipo de aprendizado.
“O primeiro passo é o autocontrole”, disse ele. “O processo sagrado começa à medida que o aprendiz deixa de obedecer aos instintos animais”. E acrescentou, antes de prosseguir viagem: “Ao mesmo tempo, há uma outra condição. É preciso ser fraterno e pacífico em relação a todos os seres”.
Impressionada pela força das palavras do mestre, a cobra Naga deixou de lado as preocupações mundanas. Praticou meditação, aproximou-se da sua alma imortal e experimentou a paz do universo infinito. Ela também tomou uma decisão: “De agora em diante, vou controlar os meus instintos e não morderei mais ninguém”.
A lei da evolução estabelece que todo conhecimento deve ser testado na prática, e o caso de Naga não foi uma exceção. Seu novo comportamento chamou atenção das crianças da aldeia. Por que razão ela ficava o dia todo imóvel, em jejum, recitando mantras e meditando sob o calor do sol? Quando todos compreenderam que o animal não atacava, começaram os risos, o desprezo e as agressões à base de paus e pedras. Com o tempo, Naga emagreceu. Adoeceu. Sua pele começou a cair. Mas ela perseverava.
Um ano depois, o animal está sem forças e à beira da morte, quando o mestre desconhecido aparece outra vez e senta-se para conversar. A cobra conta ao sábio tudo o que aconteceu e fala – feliz – da sua lealdade ao caminho espiritual. Surpreso, o mestre explica que tamanha dor não era necessária:
“Amiga, eu disse para você não atacar. Não disse que não ameaçasse morder. Não disse que não preparasse o bote. Não deixe de impor respeito: não faça mal a ninguém, mas – quando necessário – defenda-se sem violência.”
Qual foi, então, o erro de Naga? Ela idealizou o caminho da sabedoria de maneira ingênua e ignorou o fato de que conflitos e contradições fazem parte da vida. Os exemplos são muitos. A cada momento temos de tomar decisões, e antes de cada decisão há uma certa luta entre diferentes tendências em nosso interior. As pessoas vivem conflitos psicológicos dentro de si, e se isso é verdade, é também natural que haja discordâncias nas relações humanas e sociais.
Contraste é vida, e vida é movimento. A uniformidade imobilista não é saudável. Quando as pessoas têm medo das discordâncias naturais, elas passam a reprimir as suas diferenças de opinião na esperança de preservar a paz. Assim, a sinceridade é substituída pela cortesia. Gradualmente, a confiança mútua desaparece, abrindo espaço para a má-vontade, os sentimentos hipócritas e a deslealdade.
Por isso a sinceridade é sempre melhor que a harmonia forçada. Naturalmente, é agradável estar rodeado de pessoas que concordam conosco em todos os aspectos. Mas, se fosse possível viver desse modo o tempo todo, nossa evolução correria grave risco de ser interrompida. Assim como as pedras dos rios ficam redondas após longos anos de atrito, também os seres humanos necessitam de suas dificuldades e contradições para aperfeiçoar-se.
É certo que devemos evitar as desarmonias, mas em muitos casos elas são inevitáveis, e então o melhor que podemos fazer é aprender com elas. Para o pensador grego Plutarco (46. d.C.- 120 d.C.) os inimigos são comparáveis às dificuldades naturais que a vida coloca diante de nós. Um velejador experiente não se desespera com o vento contrário, mas sabe usá-lo para avançar no rumo certo. Do mesmo modo, devemos aproveitar as inimizades e outros desafios para aumentar nosso autoconhecimento.
“O fogo queima quem o toca, mas também fornece luz e calor e serve a uma infinidade de usos para aqueles que sabem utilizá-lo”, explica Plutarco. A situação é idêntica com os adversários ou invejosos: “O que é mais prejudicial na inimizade pode tornar-se o mais proveitoso”, diz ele. “É que teu inimigo, continuamente atento, espia tuas ações na expectativa da menor falha, e fica à espreita em torno da tua vida”.
Na tarefa de identificar nossos erros, os inimigos são mais úteis que os amigos. Os adversários aumentam o perigo e, com isso, não nos deixam adormecer na rotina. Para Plutarco, necessitamos amigos sinceros e inimigos ardentes: “uns nos afastam do mal por suas advertências, os outros, por sua censura”. Porém, os amigos geralmente evitam falar com franqueza. Além disso, o amor pode ser cego em relação a aquilo que ele ama. Mas o rancor consegue revelar as manias e os fracassos de qualquer um.
Quando o invejoso mente em suas críticas, podemos lembrar que, seja como for, nós ainda estamos longe da perfeição. É verdade que ele vê erros em nós que não existem. Mas talvez haja erros em nós que ele não vê. Devemos aproveitar a oportunidade de uma crítica contra nós para exercer vigilância e aumentar nossa força interior. A confiança no bem e a autoconfiança nos darão tranquilidade para observar os erros do ponto de vista do nosso potencial divino. E, sobretudo, para valorizar nossos acertos.
Carlos Cardoso Aveline é jornalista.
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