quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A opulência dos espíritos

*CLÁUDIO MOTTA

As almas ali habitantes eram de uma riqueza nunca dantes vista. A pobreza de coração lá não tinha guarida. Ali não havia espíritos mesquinhos, porque todos estavam prontos a se ajudarem, a se complementarem. Na hora necessária, no momento do infausto, nos golpes aplicados pela vida, todos estavam reunidos para resolver o problema ou para chorar a dor do irmão que sofria.

Falo-vos da Xapuri do meu tempo de criança e adolescente, uma época em que os meus pais foram alvos de favores que iam da assistência ao pé do leito de minha mãe que se contorcia com as dores do parto, às aulas particulares, de cortesia, com que fui brindado por aqueles corações infinitamente benignos. Por Deus!

Com relação à vida de menino pobre por mim vivida, em verdade vos digo que foi, às vezes, um tanto azeda, mas, na maioria das ocasiões, foi mesmo bem divertida, apesar das limitações e da falta de oportunidade para ir à matinê do vetusto Cine Rialto.

As minhas primeiras lembranças vêm dos anos sessenta, época em que aprendi a ler, aos cinco anos, contando com o talento da Regina, irmã de criação, hoje viajante de outros mundos, que me ensinou as primeiras letras e que ainda é o meu ponto inicial de referência na arte da busca da letra e da rima doce da poesia perfeita. Benza-nos o Onipotente!

Em casa, havia uma mesa grande, onde Regina, a irmã, dava aulas particulares para os filhos da elite média baixa lá dos meus cafundós. Foi lá que tomei contato pela primeira vez com José Edmilson Gomes Figueiredo, o Bacana, José Raimundo Barroso Bestene, o Marrau, e Cláudio da Costa Ferreira, o Cadite, expoentes da escolinha. Havia ainda o João Amorim Caminha, o Pançudo, e mais dois garotos um tanto arredios, atônitos, filhos do Seu Dino, o do Café, dentre outros menos cotados. Vi alguns pais  -  que não são necessariamente destes garotos  -  levarem varas de bambu para que os filhos fossem alcançados à distância pelo açoite da professora que nunca ficava enfezada e nem batia em ninguém. Mas ameaçava. Enfim, era aquela a raiz mestra do método brabo do carrancismo baseado na pancada, a fórmula básica a partir da qual grandes homens foram criados lá em Xapuri.

Observador que nem coruja, bem ao lado da professora Regina, eu me postava atento aos mínimos detalhes do que devia e do que não devia aprender. Em suma, aquela primeira escola foi a grande escola da minha vida, uma vez que os alunos todos tinham idade maior que a minha, uns mais, outros muito mais.

Eis, então, a base a partir de onde alcei os primeiros voos. Mas tudo ocorreu da melhor forma possível porque a pequena cidade era formada basicamente por parentes, amigos, compadres, camaradas. Lá, até havia um homem cujo nome era Parente Amigo. Verdade!

E o vai e vem ainda é grande na memória mais anterior. Há personagens dos mais variados matizes possíveis. Uns marcantes. Outros bem pior que isso.

Todo menino observador tem um ou dois ídolos moleques maiores que fazem as proezas mais incríveis que poucos conseguem. Tinha um molecão meio doido e um outro, primo dele, mais maluco ainda. A barra era uma brincadeira que consistia em um grupo correr atrás do outro até tocá-lo. Perdia o grupo que menos conseguisse alcançar os integrantes do outro. Esses dois carregavam codinomes bastante sugestivos. Um era o Índio-ruço. O outro era o Dapuí. Quanta vadiagem! Que apelidos fantásticos! As mães deles não foram tão criativas quando lhes pespegaram os nomes verdadeiros de Jorge e Antônio, como o santo da Capadócia, na Turquia, e o outro de Pádua, na Itália. Aliás, no Xapuri da minha época, todos ou quase todos tinham os apelidos mais alusivos que já vi na vida. Já pensou o tanto de poesia que cabe no nome de um moço chamado Caboclo da Morena? Espetacular! Magistral!

Certa noite, então, aí pelas oito, da janela da casa da minha tia Lourdes, na Rua Batista de Moraes, só assistia o movimento dos meninos, posto que a minha avó cearense furibunda jamais permitiria que eu participasse de uma contenda tão doida.

O ápice da doidice era quando os dois primos atravessavam o Rio Acre, à noite, a nado, claro, um atrás do outro, com a finalidade exclusiva de não perder o jogo... E iam e voltavam, como se nada tivesse acontecido, apesar de molhados até as almas pouco santas e nada virtuosas. Jamais.

Nunca fui dado a apanhar sol, de forma alguma, a não ser quando, aos quinze e dezesseis anos, fui obrigado pela vida a trabalhar calçando as ruas da nossa pequena e famosa Xapuri. Apesar do subterfúgio que era me esconder das moças, minhas amigas do colégio, que transitavam pela cidade e poderiam me reconhecer com a camisa amarrada à cabeça, foi também um tempo de bastante aprendizado ao lado de figuras como o Aurélio da Maria de Belém, o Antônio Maria, o Fernando Rasteireiro, o Célio Tigurão, o João Uchôa, o Edgar Mão de Pilão e o Estêvão da Dona Amélia. Joias raras da coroa da cidade princesa.

Pois, então. Em menino, via o sol brandir meio dia em ponto e uns moleques de famílias abastadas misturados a uns outros um tanto desfavorecidos, mais ou menos da minha idade, ficavam a empinar  papagaio no meio da rua ou nos espaços urbanos entre o grupo escolar e a igreja. Era mesmo assim, minha senhora. Lá havia as famosas guerras de pipas no céu, tal e qual é descrito na poesia do Chico Buarque. E, como em qualquer área da experiência humana na terra, aí também se destacavam talentos natos na arte de ficar de cara para o sol tentando cortar a linha das pipas um do outro. De novo, eu cá da janela do meu observatório, agora instalado na Rua Vinte e Quatro de Janeiro, ficava a analisar os truques e manhas e trejeitos dos craques cujas almas voavam nos céus através dos seus sonhos de moleques de futuro. Lembro um melhor que o outro, como o já citado Cadite, o Mirim, o Luís Carlos Simão, o Bainha, o Tufizinho, dentre muitos.

Boas lembranças estas, meus amigos! Que Deus lhes abençoe onde quer que estejam.

Eu aprendia tudo, na teoria, uma vez que, na prática, nunca consegui levantar um papagaio, jamais joguei peteca bolinha de gude, não derrubei sequer uma manga porque não acertava pedradas, apesar das dezenas de mangueiras e apesar de estes frutos amadurecerem em profusão na época no início do inverno. Estrategista de dar gosto à minha mãe, não fui craque de futebol porque a escola deveria ser levada a sério porque a escola forma para a vida e a vida deve também ser levada muito a sério. Era esta uma das máximas e a filosofia dela, da Dona Nenen do Seu Gibiri.

- É preciso caprichar em tudo, meu rapaz! - Eram as palavras de mamãe desde muito cedo da minha vida, até por último, quando o dia dela se fez noite escura, depois de oitenta e quatro voltas ao redor do sol de Deus.

Já aos doze, quase um adulto, pela manhã, ia ganhar alguns trocados, mas também estava em busca de uma profissão. Trabalhei ou fui aprendiz do moveleiro mais exímio de Xapuri, o Elias Monteiro Luz, codinome Breque. Aprendi, principalmente, a manusear ferramentas de marceneiro que hoje não mais existem, como o graminho, a galopa, o sargento, a torquês, a serra de volta e o arco de pua. Ajudei o bom homem a fazer os caixões nos quais enterramos homens e mulheres de muita eminência da minha cidade. Muitos foram diretos para o céu. Outros, nem tanto.

Aos domingos, na missa das crianças, às nove da manhã, lá estávamos nós, eu e os meus irmãos mais velhos e também os mais novos que sempre acreditaram nas obras da  Divina Providência. De início, pouco entendia do riscado, uma vez que a Santa Missa era rezada em latim.

Ave Maria, gratia plena. Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus frutus ventri tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae. Amen.      

O Padre Carlos Maria Zuchinni  mandava muito bem, mas eu tinha uns cinco anos e não manjava patavina. Só depois é que estudei latim, na Ufac, e consegui entender as idas e vindas do genitivo, do possessivo e do ablativo da língua dos romanos da era clássica da Humanidade.

Com as bênçãos da avó cearense iracunda, pertencente à Congregação de Nossa Senhora das Dores, aquelas mulheres que portavam uma fita roxa ao pescoço, tornei-me, enfim, um sacristão de brilho um tanto opaco cujo currículo não foi dos mais brilhantes posto que, apesar de uns quatro anos no ofício, poucas vezes cheguei ao posto máximo da ordem cuja função mais importante entre os nossos era balançar o badalo ou a campainha do Padre José na hora do Santíssimo.

Também, pudera! Havia um garoto, quase um rapaz, que quase levava para casa o instrumento de fazer o barulho divinal da Consagração. Era o Tião da Dona Oneide, um quase irmão nosso que se preocupava muito mais em vigiar o badalo ou dar cascudos nos menores que mesmo com alguma outra coisa que tivesse a ver com os preceitos dogmáticos da Santa Madre Igreja.

E por aí a vida foi sendo tocada de barriga cheia, porque o estivador lá de casa, além do grande pai que foi, era ainda um competente caçador.

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*Cronista: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br   -  Dê sugestões!

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O juiz, a imprensa, o mensalão

João Baptista Herkenhoff

Este artigo não se refere a pessoas, mas sim a princípios jurídicos. Suponho que a reflexão sobre esses princípios será proveitosa, especialmente na semana em que algumas pessoas pretendem, de maneira equivocada, julgar moralmente o Ministro Celso de Mello, a partir de seu voto de desempate no chamado processo do Mensalão.

Os princípios são aplicáveis hoje, como foram aplicáveis ontem e serão aplicáveis amanhã.

Tentarei elencar alguns princípios que constituem a essência do Direito numa sociedade democrática.

1. Jamais o alarido da imprensa deve afastar o magistrado da obrigação de julgar segundo sua consciência. Ainda que a multidão grite Barrabás, o magistrado incorruptível caminhará sereno através da corrente ruidosa e, se não estiver plenamente convencido da culpa do acusado, proferirá sentença de absolvição. Da mesma forma, se as ruas gritarem “inocente”, o magistrado reto e probo condenará, se a consciência lhe apontar o veredicto condenatório como o justo à face do caso.

2. O princípio de que, no processo criminal, a dúvida beneficia o réu permanece de pé. Resume-se nesta frase latina: “In dubio pro reo”. É melhor absolver mil culpados do que condenar um inocente.

3. A condenação criminal exige provas. Não se pode basear em ilações, inferências, encadeamento de hipóteses, presunções, suposições. Mesmo que o juiz esteja subjetivamente convencido da culpa, não lhe é lícito condenar se não houver nos autos prova evidente da culpabilidade.

4. No estado democrático de direito todos têm direito a um julgamento justo pelos tribunais. Observe-se a abrangência do pronome “todos”: ninguém fica de fora. Este princípio persevera em qualquer situação, não cabendo excepcioná-lo à face de determinadas contingências de um momento histórico.

5. Todo magistrado carrega, na sua mente, uma ideologia. Não há magistrados ideologicamente neutros. A suposta neutralidade ideológica das cortes é uma hipocrisia. Espera-se, porém, como exigência ética, que a ideologia não afaste o magistrado do dever de julgar segundo critérios de Justiça.

João Baptista Herkenhoff, 77 anos, é Juiz de Direito aposentado, palestrante e escritor. Seu mais recente livro tem este título: Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves. (GZ Editora, Rio de Janeiro).

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Mônica, Cebolinha, Cascão e o hábito de leitura das crianças

Antonio Luiz Rios*

Numerosos estudos demonstram que as crianças que leem têm mais facilidade de aprendizagem e melhor rendimento escolar. Ante tal constatação e a certeza de que os livros são caminhos obrigatórios na busca do conhecimento e formação dos indivíduos, é fundamental toda iniciativa que estimule o hábito de leitura na população infantojuvenil.

Nesse sentido, as feiras de livros cumprem missão importante, ao desenvolverem atrações lúdicas para as crianças que as visitam, seja em companhia das famílias ou nos programas coletivos organizados pelas escolas. Há toda uma magia nesse contato tão próximo entre os leitores mirins, as obras e os autores, cuja presença, autógrafos e interação com o público são fatores estimulantes ao ingresso dos pequenos no universo fascinante da leitura.

Corroborou minha crença sobre a importância para as crianças dessa integração de autores e leitores, a XVI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, de 29 de agosto a 8 de setembro de 2013. No evento, foi possível testemunhar, em numerosas oportunidades, o encantamento que o livro pode causar no público infantil, quando apresentado como algo que instrui, educa, diverte e ensina de modo atrativo e instigante.

De modo mais especial, observei esse fenômeno ao lançarmos a coleção “Biblioteca da Turma”, série com seis livros multidisciplinares, voltada ao apoio didático, que trata de civilizações antigas, animais pré-históricos, esportes olímpicos, Floresta Amazônica, crianças no mundo e arte nos museus brasileiros. A alegria e a energia do contato entre o público mirim e o autor, Maurício de Souza, eram sintomas inequívocos de queMônica, Cascão e Cebolinha estavam conquistando novos e perenes leitores. Esse caráter lúdico também reforça a importância do e-book, em suas distintas formas, como fator indutor da leitura no público infantil. Também foi possível verificar isso na Bienal do Rio de Janeiro, ao lançarmos plataformas e aplicativos. Esses livros “conversam” com a criança do Século XXI numa linguagem que ela entende e gosta desde os primeiros impulsos da consciência.

Enfatizada a importância das feiras, não podemos, contudo, subestimar o insubstituível e crucial papel das escolas e das famílias no estímulo das crianças. A última edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, elaborada pelo Instituto Pró-Livro (IPL), com apoio da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), mostra algo interessante: os professores são, hoje, os principais incentivadores da leitura, ultrapassando as mães, que figuram em segundo lugar.

O mesmo estudo mostra que esse processo de estímulo tem funcionado, pois no universo dos estudantes (64% da população ou 114 milhões de pessoas), o nível de leitura atingiu 3,41 exemplares per capita nos três meses anteriores à realização da pesquisa. Desse total, 2,21 livros são indicados pelas escolas, divididos em didáticos (1,72) e literatura (0,49). Com certeza, podemos e devemos avançar ainda mais, conduzindo nossas crianças e jovens ao universo do livro. Este é o caminho mais seguro para a definitiva conquista de nosso desenvolvimento; é o nosso melhor legado às presentes e futuras gerações.

*Antonio Luiz Rios, economista, é o diretor-superintendente da Editora FTD.

domingo, 15 de setembro de 2013

Premeditando a solidão, como no samba

*CLÁUDIO MOTTA

Ele estava afixado à parede do velho solar há pelo menos sessenta anos. Amarelecera. Cansara de ficar dependurado ali naquele canto por tanto tempo. Os bigodes caíam-lhe para dentro da boca. Algum bolor chegava a parecer catarro escorrido do grande nariz aquilino. Os olhos já não eram vistos devido o fluir da poeira do tempo. Já não agüentava mais.

À meia noite, dele para ele mesmo e para quem estivesse por perto, havia um revirar de olhos, um ranger de dentes, um arrastar de alpercatas de couro cru feitas ainda no Ceará. As tábuas do assoalho gemiam taciturnas sem que ninguém as pisasse. Um pigarro curto e grosso também era ouvido depois de anos em vida fumante. A gravata tornara-se uma mancha. O paletó era preto, a camisa branca, a foto era em preto e branco, obtida em um tempo distante, quando ainda não havia fotografia, mas tiravam-se retratos.

Os filhos se foram em busca de estudos e nunca mais voltaram nem em visita à casa paterna. Abandonaram os pais, à época, já com bastante ouro negro nos alforjes. Casaram-se, um no Rio de Janeiro e a menina em Belém. Nunca mais deram as caras, mas continuavam recebendo o dinheiro que o velho mandava para as suas contas no Banco da Lavoura.

A esposa libanesa desaparecera em meio a uma friagem seca de dez dias causadora de um surto de gripe forte que assolou o rincão e matou pra mais de dez velhinhos, só na pequena cidade. Depois do enterro, o velho encarquilhara ainda mais e já voltara pra casa com os bigodes brancos, tamanho foi o dilema.

Pela cidade, andava com as mãos para trás e os olhos postos no chão da sua história de rico dono de seringais a perder de vista. Dizia ele que gostava de manter a vista baixa, para não topar no pedregulho que lhe impunha uma vida antes tão calorosa e animada pela presença dos filhos pequenos, em alegria borbulhante à custa de muito dinheiro.

Arrendara a terra para um outro nordestino na base do meio a meio. O mais novo trabalhava e transformava tudo em dinheiro. Ele, bem mais velho, levava a sua metade e a guardava em um cofre forte de ferro fundido vindo de Belém do Pará. Como gastava pouco  -  a não ser o que mandava para os filhos e com alguns víveres para a sobrexistência miserável  -  o dinheiro exorbitava, vazava pelas beiradas dos alforjes de couro cru por ele próprio fabricados quando ainda moço... Uns duzentos.

O tempo passou com a rapidez de um maçarico de beira de rio de verão. Uma tumba antiga hoje é a sua morada na parte mais velha do cemitério da cidadezinha anciã. Jamais uma vela ali foi acesa por ninguém e muito menos pelos filhos que talvez já não tragam nem o seu sobrenome, Serzedelo. Não há uma rua ou uma viela no lugarejo que leve o nome do velho cearense de chapéu grande. Viveu mais de quarenta anos e vegetou outros trinta e poucos. Andava pelas ruas da cidadezinha com as mãos nos bolsos fartos e as vistas assentadas no chão da sua história de cachorro velho solitário. Tendo sofrido muito por esta vida de Deus, morreu sem conseguir aprender o mínimo sobre a arte de ser só, o que não é tão fácil, nem tão difícil, basta ensaiar.

É por isto que tenho visto por aí muitos a fazerem treinamentos diários cujos objetivos são aprender a ser só, a viver sem nenhuma lástima do futuro que não foi construído com o cuidado e com a argamassa do amor. Se ele queria carinho, teria feito germinar e cultivaria bem querer, apego, afago, afeto. Mas assim não aconteceu. Dizia não ter encontrado tempo para certas mesuras com gente muito delicada, para ele, que era apenas um bronco muito fanático por ganhar um dinheiro que foi para as contas bancárias dos filhos que do pai sequer um dia chegaram a gostar.

Cá de minha parte, a velhice que há de vir não me parece, de modo algum, o melancólico vestíbulo da morte. A mim, ela se afigura, antes, com as verdadeiras férias grandes, depois do esgotamento dos sentidos, do coração e do espírito que foi a vida. Pare o mundo que eu quero descer. Será chegada a minha hora e a minha vez. (Deixa está! Quem não quer ficar velho deve morrer enquanto moço. Receita facílima.)

Sabemos que tudo neste mundo depende do esforço que empreendemos para o alcance dos nossos objetivos. Está claro que o meu poder de concentração há de me levar longe demais. Não devo perder o foco. Por isto, quando não mais me quiserem enquanto diretor de coisa alguma, para os tempos de inverno da minha existência, guardei uma nova profissão que se fará bem rentável, em termos financeiros mesmo.

Volto-me a ti, mais uma vez, ó pecador contumaz!

Há um treino diário através do qual tu te tens tornado um escritor de meia pataca, mas que defenderá o teu milhão de dólares vorazmente, uma vez que sonhar vem de Deus e é sempre na base do zero oitocentos. Ademais, a cada dia ficas mais fera no campo da cibernética. Noto até que aprendeste o excel e cloud computing. Nunca tiveste medo dessa máquina dos infernos chamada computador. Na verdade, praticas um puta exercício para que os neurônios não morram colados um ao outro ou emparedados em cérebro pouco produtivo. Fazendo uso de gíria antiga, aos setenta, daqui a vinte e poucas voltas, ainda estarás na crista da onda e irás para a balada curtir um rock n’roll... Afinal, as academias de ginástica e os suplementos existem para nos deixar prazenteiros até o fim dos dias.

Quer aprender a ser só? Viajar por aí sozinho já é um bom exercício. Nas últimas férias, por exemplo, tu ficaste por vinte dias no Rio de Janeiro a meditar sobre as coisas da vida, acerca da razão e da emoção que já voa para longe de ti, esta última. Refletiste a respeito das paixões e das aventuras por esta vida mundana, sobre os últimos acontecimentos que envolveram o coração vagabundo, isto, é claro, entre um chopinho e outro porque também vós não sois de ferro.

É bom olhar com carinho as palavras do Millôr. Saber envelhecer é a obra-prima da sabedoria e um dos capítulos mais difíceis na grande arte de viver. Um homem começa a ficar velho quando já prefere andar só do que mal acompanhado.

Tu tens vivido, por último, a lembrar que, no romance Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez deixa registrado que o segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão.

Sem querer radicalizar, não é necessário ficares preso a fórmulas como a que prega que há apenas uma diferença entre o lobo e o homem, na velhice. Enquanto o lobo entra nos bosques para esperar o seu fim sozinho, o homem, quanto mais sente que a morte se aproxima, mais busca companhia, mesmo se ele se aborrece e se ela o aborrece.

Não há essa necessidade pequeno burguesa para os espíritos preparados para a solidão. De bem com a vida e ainda com o espelho, se é que tu conseguirás, ó camafeu, hás de pagar, do teu bolso, e não às expensas da previdência social, a bom dinheiro  -  cinco mil pratas, talvez!  -  uma bela e jovem atendente de enfermagem, sem nenhuma formação intelectual, que te fará o acompanhamento ao médico, além de uns carinhos quando os estimulantes sintéticos o permitirem. Deus te fez assim. Mariposo dos infernos! Segue o teu tempo e o teu caminho em paz, ó fauno mulherengo!

Afinal, haverá de prevalecer a máxima fora de moda segundo a qual o ancião merece respeito não pelos cabelos brancos ou pela idade, mas pelas tarefas e empenhos, trabalhos e suores do caminho já percorrido na vida.

É claro que tu muito o fizeste. Ide em paz e muitos te acompanharão até a tumba, se tiveres ainda algum dinheiro que se faça suficiente para pagar o velório e o féretro na maior orgia, na base do champanhe e ova de esturjão.

Ora! Viveste porque viveste... E bem, obrigado.

*Cronista: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br.

domingo, 1 de setembro de 2013

Meritíssimo

João Baptista Herkenhoff

Quando eu era Juiz de Direito em atividade, causava-me certo incômodo o tratamento “meritíssimo”. Meritoso, adjetivo que significa digno de apreço ou de elogios, ainda seria aceitável. Mas meritíssimo, superlativo de meritoso, parecia-me um exagero totalmente sem propósito. Mas se eu advertisse a parte, fosse advogado ou cidadão comum, a respeito da impropriedade do tratamento, certamente não seria entendido. A ressalva, que eu fizesse, seria recebida como censura ou descortesia. Por esta razão, se o advogado, com a melhor das intenções, colocava a frase “meritíssimo, peço a palavra”, eu simplesmente respondia: “tem a palavra, doutor”.

O homem do povo, o trabalhador, o agricultor fica perturbado com o palavrório da Justiça. A palavra deve ser fonte de entendimento. Através do verbo as pessoas se comunicam, agradecem, fazem pedidos, manifestam sentimentos. No caso da Justiça, as expressões difíceis, as sessões secretas, as cancelas e muros, as togas, o aparato, tudo isto dificulta a relação dos cidadãos com as cortes forenses. Daí que os excessos devem ser evitados. Entretanto, numa outra vertente, há um certo encantamento com o mistério das palavras e a solenidade judicial. Relato um episódio a respeito deste ângulo da questão.

Numa comarca do interior onde judiquei, havia um homem que amava o vocabulário refinado. Ele era muito estimado na cidade. Fazia parte do júri. Vibrava de contentamento quando era sorteado para o conselho de sentença. Alguém lhe deu um dicionário de presente e ele se deliciava mergulhando naquele mundo encantado.

Certo dia ele foi ao forum e disse ao porteiro dos auditórios que desejava uma audiência com o juiz. Conduzido até a sala onde eu me encontrava e pretendendo me dirigir um grande elogio, disse-me com reverência:

“Meritíssimo, eu admiro sua petulância senil.”

Certamente o Santiago (que era o nome desta pessoa) ficou maravilhado com a sonoridade do proparoxítono petulância e com a força do oxítono senil. A junção das duas palavras pareceu-lhe maravilhosa. Deve ter consumido muito tempo em esforços, pesquisas e canseiras para construir aquela frase através da qual pretendia homenagear o meritíssimo.

Eu não podia responder apenas com um “muito obrigado”. Iria decepcioná-lo se me valesse de uma forma tão modesta de agradecimento. Era preciso manifestar minha alegria no mesmo diapasão. Foi o que tentei fazer, dizendo:

“Muito obrigado, preclaro amigo Santiago, muito obrigado por sua nobilíssima intenção”.

Falando desta forma eu não estava mentindo ou sendo hipócrita. Na verdade, estava agradecendo ao grande Santiago seu desejo de prestar sincero tributo ao juiz que ele tanto estimava.

João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor.