quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Repulsa à Tortura

João Baptista Herkenhoff

A repulsa à tortura traduz a afirmação de que todo ser humano tem o direito de ser reconhecido como pessoa.

O abandono desse princípio, a tolerância para com a tortura jogaria por terra toda a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Não por coincidência, mas por fidelidade doutrinária, a proscrição da tortura e o reconhecimento de todo ser humano como pessoa aparecem lado a lado, na Declaração Universal dos Direitos Humanos:  artigos 5 e 6.

As Cartas de Direitos posteriores à Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a Carta Africana, a Carta Islâmica e a Carta Americana de Direitos e Deveres do Homem referendaram as ideias acolhidas pelos artigos 5 e 6 da primeira. 

A Declaração Universal dos Direitos dos Povos e a Carta de Direitos proclamada pelos Povos Indígenas do Mundo não se referem, expressamente, a direitos individuais específicos.

Entretanto, implicitamente, esses documentos abrigam, na dimensão cósmica de seus postulados, todos os Direitos Humanos particularizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Trava-se nos dias de hoje uma luta universal contra a tortura.

No âmbito das Nações Unidas, são passos extremamente relevantes: a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura;  as Regras mínimas para o tratamento dos reclusos; as Regras mínimas para a administração da Justiça de Menores;  a  Declaração sobre princípios fundamentais de Justiça para as vítimas de delitos e do abuso de poder.

A "Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes" definiu como tortura todo ato pelo qual funcionário ou pessoa no exercício de função pública infrinja, intencionalmente, a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, com o fim de obter dessa pessoa ou de terceiro uma confissão, ou com o fim de castigar, intimidar ou coagir.  Esses sofrimentos tanto podem ser físicos, quanto mentais.

No seio da sociedade civil é ampla a luta contra a tortura.

No Brasil, inúmeros grupos de Direitos Humanos têm tido extrema sensibilidade para com o problema. 

A tortura política acabou no país, com a queda da ditadura instaurada em 1964.  Mas a tortura contra o preso comum é prática diuturna nas delegacias, cadeias e prisões em geral. 

Centros de Defesa de Direitos Humanos, Comissões de Justiça e Paz, Conselhos Seccionais e Comissões de Direitos Humanos das OAB’s, Pastorais Carcerárias têm vigilado e denunciado com veemência a prática da tortura nos presídios.

Dentre os grupos que lutam contra a tortura existe um que faz da abolição dessa prática hedionda  sua razão de ser.  É o grupo "Tortura Nunca Mais". 

De um lado, a imprensa registra, dramaticamente, frequentes casos de tortura.  De outro, percebe-se, em amplos setores da opinião pública, o crescimento da consciência da dignidade humana e da cidadania.

É preciso resguardar os Direitos Humanos. É preciso proteger o povo dos mais diversos atos de violência.  Os dois objetivos são complementares.  Não se combate a violência com mais violência, prepotência e arbítrio.  É preciso cuidar seriamente do aprimoramento da Polícia Técnico-Científica, de modo que os crimes sejam descobertos, de maneira racional e eficiente. A segurança do cidadão é um dos direitos humanos, mas não se protege a segurança coletiva através do abuso contra as pessoas, em regra, contra as pessoas mais humildes.

João Baptista Herkenhoff é juiz aposentado e escritor.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Bolsonaro é uma ameaça ao planeta

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ELIANE BRUM

Jair Bolsonaro, chamado nas redes sociais de “o coiso”, não é uma ameaça apenas ao Brasil, mas ao planeta. O candidato de extrema direita, que liderou o primeiro turno das eleições no Brasil, com o voto de quase 50 milhões de brasileiros, pode vencer no segundo turno, em 28 de outubro. Se ele se tornar presidente do Brasil, já avisou que pretende seguir Donald Trump e anunciar a retirada do Brasil do Acordo de Paris. Ele e seus apoiadores também já anunciaram várias medidas que abrirão a Amazônia ao desmatamento. A floresta, que já teve 20% de sua cobertura vegetal destruída, está perigosamente perto do ponto de virada. A partir dele, a maior floresta tropical do mundo se tornará uma região com vegetação esparsa e baixa biodiversidade. E o combate ao aquecimento global se tornará quase impossível.

O ultradireitista que flerta com o fascismo já anunciou que pretende fundir o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura e que o ministro desta aberração será “definido pelo setor produtivo”. O que Bolsonaro chama de “setor produtivo” é tanto o agronegócio quanto os grileiros, criminosos que se apropriam de terras públicas na base da pistolagem. No Brasil, parte do agronegócio se confunde com a grilagem e é representado no Congresso pelo que se chama de “bancada do boi”.

Essa frente, que reúne parlamentares de diferentes partidos conservadores, tem atuado fortemente nos últimos anos para avançar sobre as áreas protegidas da Amazônia. Querem transformar terras indígenas e áreas de conservação, hoje as principais barreiras contra a devastação da floresta, em pasto para boi, latifúndio de soja e mineração. Nesta eleição, anunciaram seu apoio a Jair Bolsonaro. O Partido Social Liberal (PSL) de Bolsonaro, que deverá engordar a “bancada do boi”, passou de um para 52 deputados, tornando-se o segundo maior partido da Câmara a partir de 2019.

Bolsonaro já garantiu aos grandes fazendeiros e grileiros que vai “segurar as multas ambientais”. "Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês!”, discursou em julho. “Direitos humanos é a pipoca, pô!” Também já disse que não haverá “nem um centímetro a mais para terras indígenas” e defendeu que as já demarcadas possam ser vendidas. Entusiasta da ditadura que controlou o Brasil entre 1964 e 1985, ele também já declarou que vai “colocar um ponto final no ativismo xiita ambiental”. O candidato, que exalta a tortura, afirma que “as minorias têm que se curvar à maioria” ou “simplesmente desaparecer”.

Apenas a possibilidade de ser eleito tem funcionado como uma espécie de autorização para desmatar a floresta e matar aqueles que a protegem. Vários casos de violência contra lideranças e assentamentos de camponeses ocorreram na Amazônia nesta eleição. O Brasil já é o país mais letal para defensores do meio ambiente. Com Bolsonaro, os conflitos devem explodir.

Em 8 de outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertaram que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5°C. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Alertaram também que só há 12 anos para reverter esse processo. Doze anos. A floresta amazônica é essencial para controlar o aquecimento global. E Bolsonaro já anunciou medidas que vão colocá-la abaixo.

Como o debate foi sequestrado no Brasil, o maior risco quase não é mencionado ou é simplesmente ignorado. Dentro do país. E também fora, onde o silêncio de governos e parlamentos da maioria dos países sobre a ameaça que assombra o Brasil é uma vergonha de dimensões globais.

Se não for por posicionamento humanitário, representado pelo risco de um defensor da ditadura, da tortura e do extermínio dos diferentes se tornar o presidente do maior país da América do Sul, que pelo menos seja por cálculo: o Brasil pode estar se tornando um país cada vez mais periférico em vários sentidos, mas a Amazônia é central no debate mais importante deste momento histórico e que atravessa todos os outros temas: o climático.

Quem acredita que a possibilidade de o Brasil ser governado por um homem declaradamente racista, misógino e homofóbico é apenas mais uma bizarrice da América Latina que não compreendeu que, em tempos de aquecimento global, a ameaça alcança a sua porta.

Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista brasileira.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A Copa do Mundo e as eleições

Celso Tracco

Mais uma vez, a seleção brasileira foi eliminada em uma Copa do Mundo. Caímos nas quartas de final. Nesses tempos de uso intensivo das redes sociais, muito se vê e ouve que o resultado do torneio pode ou irá influenciar o resultado das eleições. Mas, a história não diz isso.

Desde 1994, quando começou a coincidência de eleições diretas para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais, com a realização da Copa do Mundo os resultados não justificam que o brasileiro carrega para as urnas a emoção da vitória ou da derrota da seleção.

- 1994, o Brasil conquistou sua 4ª. Copa, vencendo a Itália nos pênaltis, após agoniantes 0x0 nos 120 minutos de jogo. A situação, FHC, obteve 54% dos votos contra 27% dados a Lula. A eleição foi resolvida no 1º turno. Influência do sucesso do plano real e não do futebol.

- 1998, perdemos da França, na final, por incontestáveis 3x0. "Vergonha nacional". FHC, que havia proposto a emenda da reeleição, venceu no 1º turno novamente contra Lula, 53% a 31%. Após a reeleição, houve uma maxidesvalorização do real.

- 2002, Brasil campeão, venceu a Alemanha na final por 2x0. A oposição, Lula, venceu o candidato da situação, José Serra, no 2º. turno obtendo 61% dos votos contra 39%.

- 2006 Brasil eliminado pela França nas quartas de final, outra "vergonha nacional". Lula é reeleito no 2º turno com 61% dos votos contra 39% dados a Geraldo Alckmin.

- 2010 – Brasil eliminado pela Holanda nas quartas de final. A situação, PT, elege o sucessor de Lula – Dilma Rousseff – com 56% dos votos contra 44% de José Serra, no 2º turno.

- 2014, o Brasil passa pela maior vergonha futebolística da história: é eliminado por acachapantes 7x1 para a Alemanha em pleno Mineirão. Dilma é reeleita, 2º turno, com 51,6% contra 48,4% dados a Aécio Neves. Após as eleições, o Brasil mergulhou na maior crise econômica de sua história.

Não há correlação entre o resultado da Copa e da eleição. Se aprofundarmos a pesquisa veremos que os estelionatos eleitorais e as falcatruas, praticados por ambos partidos entre 1994 – 2014, influenciaram muito mais as eleições do que o futebol. Resumindo: há muito tempo não somos o país do futebol, já nem há mais comoção quando o Brasil perde, a não ser o falso choro de atletas que devem milhões de reais para a Receita Federal. Também não somos o país do futuro. Mas somos o campeão mundial da corrupção, dos altos impostos, da desigualdade social, dos privilégios da máquina pública. E somente pelo voto consciente de toda população, poderemos expulsar esses políticos lesa-pátria de campo. E nem vai precisar do árbitro de vídeo. Renovar é preciso e necessário.

Celso Luiz Tracco é economista e autor do livro Às Margens do Ipiranga - a esperança em sobreviver numa sociedade desigual.

O Papa e o aborto

João Baptista Herkenhoff

O Papa Francisco autorizou que todos os padres da Igreja Católica possam perdoar o aborto. Com esta decisão, quem fizer aborto – médicos e pacientes – não será mais excomungado pela Igreja.

Francisco recomenda que os casos sejam analisados à luz da misericórdia divina. Ressaltou o pontífice que a misericórdia é um valor social. Deve devolver dignidade a milhões de pessoas. Ninguém pode impor condições à clemência de Deus.

Feito este preâmbulo, exponho minha opinião.

Sou a favor da Vida. Contra a pena de morte e a guerra. A favor de políticas públicas que favoreçam o parto feliz e a maternidade protegida. Contra a falta de saneamento nos bairros pobres, causa de doenças e endemias que produzem a morte.

Discordo da percepção limitada dos que reduzem a defesa da vida à proibição do aborto. Abomino a hipocrisia dos que sabem que a defesa da vida exige reformas estruturais, mas resumem o tema a um artigo de lei porque as reformas mexem com interesses estabelecidos e ofendem o deus dinheiro. Sou contra o pensamento dos que não admitem o aborto nem quando praticado por médico para salvar a vida da mãe, mas aceitariam essa opção dolorosa se a parturiente fosse uma filha. Sou contra a opinião que obscurece as medidas sociais, pedagógicas, psicológicas, médicas que devem proteger o direito de nascer. Reprovo a opinião dos que lançam anátema contra a mulher estuprada que, no desespero, recorre ao aborto quando, na verdade, essa mulher deveria ser socorrida na sua dor. Se não tiver o heroísmo de dar à luz a criança gerada pela violência, seja compreendida e perdoada.

Hoje debato esta questão doutrinariamente. Quando fui Juiz, eu me defrontei com o aborto em concreto. Lembro-me do caso de uma mocinha. Quase à morte foi levada para um hospital que a socorreu e comunicou depois o fato à Justiça. O Promotor, no cumprimento do seu dever, formulou denúncia, que recebi. Designei interrogatório. Então, pela primeira vez, eu me defrontei com o rosto sofrido da mocinha. Aquele rosto me enterneceu. As testemunhas informaram que a acusada toda noite embalava um berço vazio como se no berço houvesse uma criança. No mesmo instante percebi o que estava ocorrendo. Disse a ela, chamando-a pelo nome:

“Madalena (nome fictício), você é muito jovem. Sua vida não acabou. Essa criança, que estava no seu ventre, não existe mais. Você pode conceber outra criança que alegre sua vida. Eu vou absolvê-la mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio como se no berço estivesse a criança que permanece no seu coração. Esse gesto de embalar o berço mostra que você tem uma alma linda, generosa, santa. Você está livre, vá em paz.”

João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado (ES), palestrante e escritor.