sábado, 27 de março de 2010

Declínio, parte II

Postei há alguns dias (leia aqui) uma parte do texto Declínio, do escritor xapuriense José Cláudio Mota Porfiro, e linkei o blog para dele para que os leitores pudessem terminar lá mesmo a leitura. Hoje, posto aqui a segunda parte. O texto é delicioso, e o pano de fundo é a nossa Xapuri. O Zé Cláudio é uma jóia rara, que nos pertence.

Segue:

“Os cuidados eram muitos e os meninos cresciam gordos e bem bonitos. Até que um dia o João se saiu muito bem, para um sujeito de poucas palavras:

- Olhe, Zeré! Você é moça solteira e desimpedida, zelosa e trabalhadeira, não é?

- Sou, sim!

- Entonces, vosmecê aproveita, arruma as trouxas e casa comigo, em Xapuri, no padre e no juiz, e nós já viaja amenhã.

- Nem concordo, nem deixo de concordar! Meu pai é que vai lhe arrespondê.

Era o que o véi queria. Um homem daqueles só o destino é que poderia colocar no caminho de uma filha tão boa como a Zeré... Casaram-se e a riqueza só aumentava.

João Veloso adquiriu, a preço de ocasião, um outro seringal a que deu o nome de Nossa Senhora de Nazaré, para homenagear a esposa nova, a pedido de Padre Felipe, o pároco de Xapuri.

Alguns anos depois, com a renda das duas propriedades mais velhas, adquiriu o Palmarizinho, já no Rio Acre.

Naquele tempo, mais cinco filhos já haviam chegado ao mundo: Estácio, Lafaete, João, Ruzevelto e Maria das Graças. Os mais velhos, já adultos, ficaram tomando de conta dos seringais São Pedro e Nazaré e as filhas do primeiro casamento vieram estudar no Colégio Divina Providência.

Como se não bastasse tanta bondade, o agora Seu Veloso levou para junto de si uma das irmãs da mulher e mais o pai, e os alocou numa fazendinha do outro lado do rio Acre, um pouquinho abaixo da sede do Palmarizinho.

De tanto subir, os negócios do Seu Veloso começaram agora a despencar, a declinar. Os meninos mais velhos não tinham o tal tino para ganhar dinheiro e os mais novos eram muito pequenos. Vieram as preocupações. Veio uma bronquite que se tornou crônica. O catarro do peito subiu de volume porque o cigarro porronca só contribuía para tal progresso. Em outubro de 1958, sob os cuidados do doutor Atel, o homem morreu num suntuoso bangalô, de sua propriedade, localizado na rua Floriano Peixoto.

O declínio financeiro ocorreu com a venda, pelos filhos, das propriedades do rio Xapuri. Mas faltava vir a derrocada fatal.

Nazaré, uma mulher de poucas letras, ficou com uma parte do dinheiro dos seringais mais velhos e, ainda, com o Palmarizinho, o que causou grande inveja à irmã Marissanta, agora casada com um traste de nome Raimundo Carneiro, irmão de outro traste, João Carneiro, ambos filhos de Zé Carneiro, agora todos amoitados na fazendinha herdada de Seu Veloso.

Um dia, Marissanta, fez proposta a Nazaré:

- Já que o teu filho João, de dezoito anos, gosta muito da minha Mariinha, já que ele pelejou e pelejou e findou arrancando o cabaço dela, e ela está buchuda dele, ela casa com ele e eu mais o Raimundo meu marido viremos morar com vocês no Palmarizinho, pra ajudar.

A proposta não foi aceita porque a vontade da viúva era arrendar o seringal e morar em Xapuri, no palacete adquirido pelo marido morto. Pior foi o fato de a família do lado de lá não ter tomado conhecimento da história.

Aí, quando Raimundo tomou ciência dos fatos, deu uma surra de umbigo de boi em Marissanta, botou Mariinha pra correr roçado adentro e jurou João Veloso Filho de morte, assim que o encontrasse. O outro João, irmão do insatisfeito, por sempre acalentar a vontade de ter para si a sobrinha como mulher, morto de ciúme, disse que o ajudaria a fazer o serviço pior. José, o pai dos dois, também deu o apoio de que eles precisavam para levar a cabo a ação final.

- Ora, eu caso com ela, com certeza, embora só tenha dezoito anos. Amanhã, eu atravesso o rio, de manhãzinha, e converso com eles. Não vai haver confusão nenhuma. Eu vou conversar direito com o pessoal de lá. – Foi o que disse o João à mãe sem saber que lhe armavam a tramóia que lhe daria fim à vida.

- Eu vou contigo! Eu e os meninos teus irmãos. – Respondeu a mãe preocupada.

E todos se aquietaram, menos João que, ali pelas cinco da tarde, sorrateiramente, pegou uma canoa e foi ter a conversa com a família da tia traidora que já concordara com a solução final.

À tardinha, no silêncio da floresta e do rio, qualquer batida mínima do remo na canoa é ouvida à distância considerável. Os que estavam lá em cima do barranco se aperceberam da aproximação de João Veloso Filho e se armaram. A vítima optou por subir atravessando um pequeno plantio de melancia e, depois, uma roça de macaxeira, indo dar na frente da casa de farinha, onde viu um pilão deitado e se sentou, na maior calma. Em seguida, por trás, sorrateiramente, o outro João, o tio enciumado, soltou-lhe uma pancada com uma cacete de bater borracha, de maçaranduba, no meio da cabeça do jurado que não caiu mas, ao contrário, de posse de uma acha de lenha, passou a travar luta mortal contra o primeiro algoz. Foi então que Raimundo, o pai de Mariinha, vendo que o irmão levava desvantagem na contenda, mirou com uma espingarda calibre dezesseis os peitos da vítima e lhe meteu chumbo. O corpo caiu estrepitosamente, já morto. João, o assassino primeiro, então, desferiu-lhe mais umas três bordoadas na cabeça de forma a destampar-lhe o cérebro. José Carneiro, o avô, ainda deu uns chutes nas costelas da vítima, como para cumprir a sua parte na ação macabra.

O corpo foi velado no palacete da Rua Floriano Peixoto. As crianças do grupo escolar, localizado em frente à vivenda, entravam na sala e ficavam perplexas ao ver os miolos da vítima que caíam, pingando, numa bacia ali colocada pata tal fim.

A única precaução contra os remorsos da morte é a inocência da vida. Uma cantiga russa de muitos séculos diz que das grandes traições é que podem se iniciar as grandes renovações. Ao fruto da inveja sem medida, da discórdia incontrolável e do declínio moral também deram o nome de João. Depois, com os três parentes mais velhos na cadeia e as mulheres sem condições de dar sustento às muitas crianças da família de assassinos, aos quatro de idade, o garotinho foi adotado por um casal de pastores evangélicos americanos, Mark e Fernanda Trimble, que o transformaram no atual jornalista e publicitário renomado de Montana, nos Estados Unidos da América”.

Um comentário:

Vivianne Pereira disse...

Adoro os textos do José Cláudio.
Tive o imenso prazer de conhecê-lo aqui em Rio Branco.
Amissíssimo da minha mãe Eliana.
Grandioso poeta e escritor.
O qual, em seus escritos maravilhosos nos transmite detalhes importantissimos de nossa história, além de nos envolver de forma a vivenciarmos as mesmas.
Parabéns a esse ilustre artista.