domingo, 15 de julho de 2012

Ventos frios benfazejos

José Cláudio Mota Porfiro

O crime nunca é necessário, nem o seu relato, talvez. A crueza dos fatos causa repugnância em quem deles toma conhecimento. O asco é consequência do nível de desumanidade nas relações até entre parentes de primeiro grau. O ser humano é, sim, a pior obra que partiu das mãos de Deus. Felizmente, dentre tantos párias voejando ou mourejando pelo paraíso terrestre, há uma parte considerável que deixa o Altíssimo acima de qualquer crítica fortuita, como a que acabo de tecer. Tem gente boa no mundo, certamente. É claro que Ele não há de levar em consideração a blasfêmia proferida, aqui, por este pecador contumaz e farofeiro. O meu envolvimento com o caso é justificado pela preocupação que tenho por afastar-me tanto da carreira jurídica. Também sou formado causídico, assim como me formei nas artes econômicas enquanto a ciência que combina os números com o bem-estar dos homens. Ora, pois!

É maio sonolento por estas plagas de Deus meu. O rio já está lá embaixo, mais uma vez. Conto vinte e um degraus até a ubá e o batelão, este com motor e gasolina, sempre prontos para qualquer emergência. São seis e meia da manhã. Hoje, muito especialmente, amanheceu uma névoa por sobre a copa da mata e por sobre o rio. No rés da água, não se vê cinco metros à frente. Isto é que é a floresta amazônica. Que silêncio aterrador. Os pássaros emudeceram. Há alguma coisa que se aproxima, sorrateiramente. Quanto encantamento. Que clima doido!

Surge uma novidade de saias por aqui. Chegou ontem, vinda do Seringal Porto Carlos. Há uma canção bonita nos lábios de Maria Mercedes, a nova empregada do barracão, de origem peruana, mas, pelo visto e sentido, amante da música brasileira. Diz-nos ela que a modinha é Serenata, cantada por Vicente Celestino, o indescritível.

Na Guanabara um barco a vela navegava dentro de um raio de luar franjado em prata e um bandolim lá no barquinho alguém tocava a mais sublime e deliciosa serenata. Segui o barco em outro barco para ver quem manejava o bandolim com tanto ardor e uma sereia ouço cantando assim dizer: onde estará meu grande amor (...)

São quatro da tarde. Cai, agora, uma chuva fininha de dar sono, muito sono. O tempo passa sem nenhuma pressa. Morro de saudades, apesar dos olhos peruanos furtivos que me seguem. Lá pelas dez da noite, rajadas de vento fazem um intenso e constante barulho nas folhas dos coqueiros, mangueiras, e, parece-me, rasga o matagal de bananeiras bravas do outro lado do rio, de fora a fora, com fúria... É a friagem.

Uma vez mais, todo o rigor do tempo se abate sobre os amazônicos. E eu, cá com os meus botões, penso agora nos entes queridos que estão distantes. Como posso estar tão longe dos filhos e da esposa? Eu não sou um perseguido. Sempre tive condições materiais para manter a mim e à família, tranquilamente, sem maiores sustos, sem a necessidade da ajuda de quem quer que seja, uma vez que tenho talentos para várias coisas, inclusive, para a vadiagem compulsiva e sadia dos meus fins de semana na urbi. Então, o que importuna é a alma cigana sem paradeiro. Tenho a impressão que jamais vou me sentir sossegado, num canto, cochilando, meditabundo, posto que nunca procurei sossego e sempre fui da pá virada; tenho sangue no olho e fogo nas ventas. Mas tudo passa, até esse período em que rumino tantas recordações boas dos meus que foram ficando pelo caminho, inclusive, as três tias cearenses.

Pela manhãzinha, cessa a ventania. Depois, daqui a alguns dias, ela voltará para encerrar a friagem. É real demais. Deus dá o frio conforme o cobertor e a rede, ou a tipóia. As crianças deixam escorrer dos narizes um catarrinho fino, mas constante, sobre o qual passam as mãos sujas e as levam rumo à boca. Estão vestidas em pijamas confeccionados e até bem feitos pelas mães habilidosas na costura à mão. Os agasalhos são de flanela de qualidade inferior comprada aqui mesmo no armazém, que é a nossa loja de secos e molhados, de tecido, de sal, de querosene, de agulha, de anzol e linha de pescar, e muito mais.

Passados dois dias, as castanheiras já estão desfolhadas, o que é natural; é próprio do ciclo produtivo delas. Os lábios de todos estão ressequidos em vista da necessidade de passar a língua nos beiços para minorar a sequidão deixada pelo vento. As pernas estão cinzentas e os mais morenos não podem sequer se coçar porque a pele mestiça é tomada por um branco acinzentado muito próprio da estação.

As famílias estão mais unidas. Os cobertores são usados também no decorrer do dia. Todos ficam à beira dos fogões de barro, para se aquecer. As mulheres cozinham se espremendo entre os filhos. Os homens vão para o eito em busca do alimento que vem da terra, ou para as missões de comboieiros, no centro do seringal, porque a vida continua e a miséria corre solta por este mundão amazônico de meu Deus. Lembro-me que, no ano passado, aqui mesmo, um velhinho morreu de frio, e de abandono.

À noitinha, fogueiras crepitam bem próximas aos banquinhos onde todos se sentam para a conversa que os torna mais vivos e mais animados. Muitas histórias amazônicas tristes são contadas pelo Sororoca. Vem à tona a sua solidão e a lembrança da quenga que o traiu e ainda consentiu em que o matassem. Penso, então, naqueles que, como o Abidoral Sampaio, moram sozinhos em colocações situadas a quatro ou cinco horas de viagem do barracão à beira do rio.

Mercedes diz que a friagem vem do Peru, lá das cordilheiras. Já eu penso que esse vento (dela) passa bem por cima, se é que consegue transpor as montanhas geladas de lá. Suponho que a friagem vem do sul, da Patagônia e, depois, se engancha na mata e, por aqui, passa dias e dias.

Sento-me debaixo de um pé de jenipapo acompanhado da Mercedes e do velho amigo Sororoca, para que este não me deixe mentir nem me atrapalhe se por acaso a minha conversa e os meus tais encantos falarem mais alto. Ela é morena trigueira, pele cor de jambo bem tratada. Parece que nunca foi do seringal. É falante e um pouco engraçada. De estatura média, cabelos lisos, negros e amarrados ao estilo rabo de cavalo, usa saias rodadas, quadriculadas e muitos já desconfiam. Logo de mim que sou quase um santo. Pela manhã, eu juntara uma pipira morta com as asas tesas. Agora, um bem-te-vi morto cai do jenipapeiro mesmo nas saias da nossa interlocutora. Digo-lhe que não pode haver nenhum presságio negativo, uma vez que mais dois outros pássaros do mesmo tamanho também morreram de frio e jazem ali pertinho.

- Cumpade Melqui! Vosmecê já viu que os cachorros não se levantam e ficam deitados por todo o dia? É que eles são muito magros e lá, debaixo da barraca, aquela terra solta deixada pelas galinhas é bem quentinha devido o contato com o corpo deles. Ói o galo! Ainda tá pegando é galinha. - Eis as observações do mestre Sororoca.

- É mestre. O que o senhor está dizendo é pertinente. Primeiro, as galinhas tem uma plumagem que as deixa aquecidas se não estiverem em contato com o gelo ou com a água. Apesar do frio, o sangue mais espesso que corre nas veias desses animais - como nós mesmos - continua quente. Se esfriar, coitado dos cachorros. Serão jogados para os peixes.

Estou quase dando aula de anatomia. O atencioso aluno é um tanto ensimesmado, mas meu tom é professoral. Os dois prestam uma atenção danada ao que digo. Não estão surpresos, mas ficam boquiabertos. Talvez eu queira impressionar. Ela me acha um sábio e eu me sinto um perfeito cavalheiro como nunca fui.

Daí, foram quinze dias sem a luz do sol. Depois, um céu azul e um vento seco cortante que ainda deixa as noites bem frias. Ontem mesmo, passados já dezoito noites da primeira ventania, fomos à praia, eu, Estácio e Sororoca, com porongas na cabeça, à noite, para uma pescaria diferente cuja denominação é faxiar.

Há um espécime aquático da família das arraias, de nome sôia, sem ferrão, que, no verão, gosta de se esconder debaixo da areia fininha, na água rasa, quando escurece. Como se trata de um peixe muito besta, no dizer dos amazônicos, basta furá-la com um terçado e jogá-la num cesto de cipó. Fresquinha, ainda na janta ela é frita na banha de porco e traçada com macaxeira ou arroz. É uma gostoseira de lamber os beiços e muitos ainda a comem no quebra jejum. É bom deixar registrado que me abespinhei e, empolgado com a pescaria, caí numa ponta de praia, onde o rio de repente se torna mais fundo, e tive que nadar, à noite, de camisa, calça e sapato de seringa. Como os meus amigos mangaram de mim!

Em uma ou duas semanas, como por premonição, todas as contas estão bem passadas no borrador e, inclusive, as que dizem respeito às relações comerciais com as praças de Belém e Manaus.
Agora, é esperar a primeira viagem do comboio às colocações e já teremos novas cadernetas para cada um dos seringueiros, visto que, ainda em junho, muita borracha virá para o embarque ou para a descida no rumo da Boca do Acre, através das balsas.

Na segunda-feira seguinte, já bem de tarde, apareceu uma lanchinha conduzida por um fulano de tal Ovídio, vinda de Xapuri. A embarcação é de mais ou menos uns cinco metros, e só, mas tem o motor no meio do casco, o que lhe dá uma certa velocidade, e se chama Projeto. Quando a ocasião é importante, é uma espécie de correio mais ou menos rápido que pode resolver tudo com muito mais facilidade.

O Ovídio me entregou um envelope com as armas e o selo nacional, onde se lia República Federativa do Brasil. Lá estava o meu nome enquanto destinatário. Fiquei logo arrupiado e pensei na importância de tudo antes de ler o conteúdo da correspondência. A interferência do pessoal de Belém tornara realidade uma sonhada nomeação para chefiar a Mesa de Renda Federal do Acre, em Rio Branco.

Não há o que esperar. Tudo o que tenho de meu, inclusive os livros, é arrumado em duas malotas. Depois da janta, largamos o pau num vinho português. De madrugada, à custa do patrão, como presente, agradecimento, partimos para Rio Branco à bordo da lanchinha Projeto.

Sou feliz por um dia ter nascido abençoado pelas graças de Deus.E tudo está apenas começando...

Como diria o Francisco Braga, José Cláudio Mota Porfiro é uma ruma de coisas, inclusive escritor.

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