Antônio Henrique Martins de Carvalho
Tentar travar alguma discussão sobre a perversidade dos mecanismos de seleção de alunos na escola pública é sempre uma tarefa extremamente árdua para quem acredita na educação pública verdadeiramente popular e democrática. Mas porque não ousar buscar o debate público através deste jornal sobre esta questão tão fundamental para o futuro de nossos jovens e também do nosso Estado?
Faço isso motivado a questionar a crueldade que a imposição de arbitrariedades culturais, como a introdução de mecanismos de seleção/exclusão na educação pública básica, pode representar e, também, para denunciar uma realidade que salta aos olhos de qualquer pessoa que se proponha sinceramente a observar que tipo de escola é reservada para os desprivilegiados de nosso Estado.
Iniciarei com uma pergunta simples, mas embaraçosa para vários professores e técnicos do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Acre: Você é a favor ou contra o sistema de sorteio para ingresso na educação básica dos institutos federais brasileiros?
Esta pergunta sempre causa uma grande tensão em meus pares docentes porque pode ser reveladora de certos valores muito enraizados em nossa cultura privatista/patrimonialista e de povo que historicamente testemunhou a perseverança de uma concepção de escola elitista e excludente.
Apesar de termos proclamado a mais de vinte anos em nossa constituição que a educação básica é um direito fundamental do homem e da mulher e que deve ser garantida pelo Estado, a tarefa de trazer o povo para a escola pública de qualidade permanece incompleta, em parte devido à manutenção de uma mentalidade que ao defender a seleção reforça o dualismo de escola de boa qualidade para alguns e uma escola precária para os pobres.
No Acre, uma faceta deste dualismo aparece na defesa, por parte de alguns docentes e técnicos do Instituto Federal de Educação do Acre – Campus Xapuri, da necessidade de selecionar por meio de provas seus futuros discentes. Os argumentos para tal defesa são inúmeros, porém, os mais recorrentes são aqueles que dizem que os sorteios não são democráticos. Os que assim pensam parecem considerar o individuo como sendo o único responsável por sua trajetória escolar. De tanto assumirem como verdadeiro que basta estudar para ter sucesso, admitem também que, quando não se aprende, o culpado só pode ser quem não estudou. Ao impor este arbitrário cultural como legítimo, dissimulam a própria arbitrariedade e não refletem sobre os condicionantes internos e externos ao processo pedagógico que geram as desigualdades educacionais. Entendem que aqueles mais adaptados aos códigos da cultura escolar devem ser privilegiados no acesso a educação de qualidade e passam a conferir à escola um caráter reprodutor das desigualdades pedagógicas excluindo de seus quadros aqueles que se encontram em situação de inferioridade educacional. Não compreendem que com isto negam um dos princípios fundamentais da educação, a sua função equalizadora, que deveria permitir que os alunos desfavorecidos socialmente com cultura escolar tivessem a oportunidade de adentrar numa instituição, que diz promover ensino de qualidade, para que a mesma minimizasse as distorções dando tratamento pedagógico diferenciado aos inferiorizados.
Ao defenderem mecanismos de seleção/exclusão para pretensamente formarem melhores profissionais, não percebem o imenso equivoco didático que cometem ao supor que a seleção de alunos seja um fator que induzirá à melhora na qualidade do ensino. Se isto for verdade significa que o Instituto federal, com seus professores e técnicos, estão aceitando tacitamente que são muito mal providos de recursos que possam promover o aprendizado, por isto, precisam recorrer a mecanismos externos aos seus processos escolares para ofertar boa qualidade de educação. Em outras palavras é como se estivessem declarando veladamente que são incapazes de realizar a função social para a qual se habilitaram num concurso público, qual seja, ensinar a todos nos mais variados níveis de educação (básica, graduação e pós-graduação).
Estas ideias de seleção baseadas no mérito escolar, resquícios do caduco Darwinismo Social, já foram inúmeras vezes criticadas por pensadores da educação brasileira. Numa rápida digressão, vale lembrar Anísio Teixeira que, criticando os mecanismos de seleção e hierarquização escolar de sua época, afirmava que “realmente, as inteligências que se ajustam ao ensino formal são as de certo tipo médio, excessivamente plástica e passiva. Os verdadeiramente capazes são desencorajados, e a grande maioria de outros tipos de inteligência – artística, plástica, prática – é destruída.” (Teixeira, 1957, p.391). Parece que nossos educadores querem na escola básica pública, que julgam sua, somente os alunos ajustados ao status quo educacional. A diversidade tem que ser anulada por algum processo homogeneizador.
Parece que nossas lutas sociais para diminuir as desigualdades, que muitas vezes tem na raiz a falta de educação como sua promotora, sempre tenderam a um adiamento pretensamente conciliatório para retardar o fim de privilégios. Exemplos históricos não nos faltam. Recorrendo mais uma vez ao passado, é publica e notória a declaração atribuída ao governador de Minas Gerais Antônio Carlos de Andrada, que ao final da década de 20 do século passado, receando a emergência de setores populares organizados no cenário político brasileiro e antevendo a ideologia conservadora política que moveria os interesses da “Revolução de 30”, proclamou; “Façamos a revolução antes que o povo a faça.” Vale lembrar que a frase símbolo que é estampada na camisa dos alunos do Instituto diz - “A nova revolução acreana se dará pela educação, ciência e tecnologia.” Contextualizando as duas frases ao nosso tema, pergunto: que revolução é esta que se propõe a reproduzir as mesmas exclusões que praticamos a séculos na educação brasileira?
Acredito que já passou da hora de deixarmos a hipocrisia discursiva de lado e convidarmos o povo a entrar no IFAC, sejamos verdadeiramente revolucionários e ousemos construir uma escola realmente democrática e inclusiva para que no futuro estas questões não passem de História.
Antônio Henrique Martins de Carvalho é professor de História em Xapuri-Acre.
Um comentário:
> Penso que está decisão é muito difícil de se tomar. Mas ao longo da minha
> carreira como docente vivi muitas situações que levam a pensar que o
> sorteio não seria uma forma excludente. É apenas uma maneira errada de
> trabalhar educação e exigir qualidades e qualidades de seus professores num
> sistema de ensino travado que consiste em veicular promessas via
> propagandas. Veja só: qual é o aluno que vai participar do Projeto Ciências
> sem fronteiras? seria aquele aluno considerado analfabeto institucional que
> mal sabe assinar seu nome, ou aqueles melhores alunos que detém um certo
> nível de conhecimento geral e inclusive que possui noções de inglês ou até
> fala fluentemente? ou até mesmo será aquele aluno que consegui a façanha de
> escrever numa redação do ENEM palavras bobas como trousse, enchergar ... e
> conseguir média de 1000 pontos ou escrever uma receita de miojo e atingir a
> média de 500 pontos. Atualmente o MEC está ofertando cursos on line de
> inglês via notas do ENEM devido a dificuldade de enviar seus bolsistas para
> o exterior pela falta de conhecimento ou fluência em outra língua. Então
> será que um aluno com tantas dificuldades de aprendizagem teria alguma
> chance de embarcar nesse projeto? e isto não é uma forma de exclusão?
> Enfim são muitas as nossas dificuldades de julgar , mas ainda acredito numa
> antiga forma de aprender: que consistia em se chegar ao alvo por que havia
> aprendido algo.
> E nessa atual conjuntura quando analisamos a nova forma de aprender devemos
> apenas considerar "o que o aluno quis dizer" por que senão estamos
> descriminando ou excluindo o aluno . Então se considerarmos que o sorteio é
> uma forma justa de inserir o aluno ao conhecimento, justificando o pleno
> gozo de seus direitos previstos constitucionalmente, não há o que se
> discutir em termos de qualidade, pois através desse sistema virão alunos de
> todas as camadas sociais e que tiveram uma base escolar muito à quem
> daquilo que desejaríamos, e que certamente tropeçarão em dificuldades de
> aprendizado, onde não há mais tempo para se fazer correção. Mas ao mesmo
> tempo temos uma polêmica: então quem serão os alunos dos Institutos
> Federais? a escola pública é aberta a todos que dela necessita, mas
> qualidade de ensino não é fácil de se trabalhar nesta fase do educando,
> pois ele já deveria trazer uma certa bagagem de conhecimento necessário ao
> seu objetivo.
>
> E isso torna-se o grande gargalo da educação: amplia-se as vagas mas
> esquecem de aperfeiçoar seus professores cobrando-lhes até a última gota de
> sangue... e vai coisas a fora. Diante de tantos percalços na educação,
> vale lembrar que o professor ao se deparar com aquele aluno do qual é
> responsável, trava um duelo consigo mesmo ao tentar encontrar uma solução
> prática e justa para alcançar exito de ambos os lados em nome da qualidade
> na educação que lhe fora imposta a qualquer custo. Então isso leva aos
> docentes a acreditarem que a seleção de alunos "X ou Y" seria uma solução
> viável para se trabalhar priorizando a qualidade do aprendizado.
> Então não acho que o sorteio público proposto no IFAC seja excludente, mas
> justo do ponto de vista que não há vagas paras todos e que não existe
> escolas publicas de ensino médio com seleção exclusiva e sim ofertas
> limitadas de vagas. Então neste caso, quando não se consegue "essa ou
> aquela escola" não podemos ser taxativos em dizer que sorteio é excludente.
> É apenas uma forma organizada de ter acesso a escola.
> Reflitam porque trabalhar com educação é tarefa árdua, cansativa e nem
> sempre justa aos nossos olhos.
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