domingo, 3 de março de 2013

“Aconteceu…”

A Prostituição na Vila Rio Branco "carraspanas e arrelias, distúrbios e... xilindró"

Rio Branco, Distrito de Empresa, dezembro de 1912 - Foto: Fonte: Acervo FIOCRUZ

Rio Branco, Distrito de Empresa, dezembro de 1912 - Foto: Fonte: Acervo FIOCRUZ

Francisco Bento da Silva
Sérgio Roberto Gomes de Souza

Prostituição e a vagabundagem eram preocupações centrais das autoridades policiais nos anos iniciais da organização administrativa do Acre Federal. Havia um olhar vigilante e disciplinador dos espaços públicos, privados e de suas gentes, principalmente aquelas oriundas dos estratos mais baixos da sociedade. A polícia (delegados e agentes) era o elemento mais presente no cotidiano dos "desviantes" da ordem e moral pública, fossem eles esporádicos ou costumeiros.

São muitos os casos que esses desvios das normas de "bem viver" aparecem em jornais. Um desses periódicos era o Folha do Acre, fundado em 1910, que tinha uma coluna chamada policiaes. Um relato no principio de 1911, mas que trazia uma noticia do final do ano anterior, conta que a "desabusada abelha cancellista Maria Júlia quis passar um natal turbulento na [Vila] Empreza e assim foi parar na Mucura [cadeia], donde só saiu no dia seguinte" (Folha do Acre, 01º/01/1911)1 . O tom é irônico e permeado de gírias da época, a começar pelo termo abelha que faz alusão à mulher livre, solta, que vai para onde quer e a qualquer momento. É um termo que procura de maneira pejorativa indicar que Maria Júlia era prostituta e, por cima, abusada. Algo que se reforça com o adendo de cancellista, pelo fato das prostitutas no período ficarem muitas vezes postadas nas cancelas (rótulas) ou janelas das casas, voltadas para rua, anunciando que ali se ofereciam serviços sexuais pagos.

Nesse mesmo dia, o referido jornal aponta que um sujeito chamado João Sant'Ana foi preso por tentar "disparar um revolver no frontispício de Maria Prego, vulgo Madame Tracajá. Resultado: a polícia agarrou-o e fel-o ir bater com os costados nas grades do xilindró". Não há maiores detalhes sobre as motivações das agressões de João contra a mulher duplamente apelidada: Maria Prego/Madame Tracajá. Os apelidos jocosos e irônicos sempre foram práticas corriqueiras usadas pelos jornais da época para "apresentar" à sociedade os criminosos, desviantes e sujeitos pobres que fugiam aos padrões estabelecidos de legalidade, moral e costume. Algo que já estava assentado numa larga cultura literária elitista originada em fins do período medieval e início da Era Moderna na Europa.

Ainda neste apanhado da edição do primeiro dia do novo ano de 1911, o Folha do Acre traz a noticia que o delegado "passou um formidável pito nas divertidas Joanna Bezerra de Araújo e Benta Maria da Conceição que andaram aos supapos (sic) no Hotel Madri". O motivo desta confusão, atesta a folha, era a disputa pela "plata de um boliviano baludo". Ou seja, as divertidas entraram em discórdia ao se estabelecer uma espécie de disputa para ver quem iria botar as mãos no dinheiro de um estrangeiro, o que acabou não ocorrendo. Algo diferente se deu no caso a seguir.

Neste referido hotel, cerca de três meses depois, o Folha do Acre (13/03/1911) aponta que Armando de Almeida Lobo estava almoçando na companhia "das meretrizes Amélia Pinto, Mayote e Izabel Ferreira". Após o almoço todos se dirigiram "aos aposentos da primeira d'essas mulheres, no mesmo hotel, a fim de beberem champagne". O caso se torna "policial" a partir do momento que Armando Lobo percebe que teve seu "anel de pharmaceutico" – deixado em cima de uma mesa – subtraído no momento em que se preparava para deixar o quarto de hotel onde se encontrava em deleite com as três mulheres. Consta que após tomar conhecimento, o delegado "tomou as devidas providencias" e abriu "um rigoroso inquérito a fim de apurar a verdade, já tendo sido ouvidas várias testemunhas".

Este era um dos únicos e o mais famoso hotel de Rio Branco à época, que nos dizeres do poeta Océlio de Medeiros (1917-2008), em seu livro A Represa, "um anúncio novo, afixado numa das prateleiras melhor o define: hotel familiar... Outro, escrito em letras vermelhas o completa: 'só é permitida a entrada de mulheres depois das dez horas'".

Voltando ao mesmo Folha do Acre, temos a informação que foram presas três mulheres por questões relacionadas à dívidas: "Por questões de paga não paga, as horizontaes Beatriz Bisleri, Lili Cadini e Antonia Barrabás, andaram pela polícia, onde quasi se diplomavam, mediante os trinta fachos que o carcereiro Fernandes não dispensa". "Horizontal" era uma expressão bastante usada para se referir às prostitutas, que neste caso envolvem-se em uma confusão para saberem que iria pagar uma conta contraída pelas referidas mulheres. É o que sugere o jornal.

Contudo, o olhar da polícia sobre mulheres conhecidas como "horizontais", "abelhas" e outro termos correlatos, era tão frequente e cotidiano que ensejava lidar com caso como o descrito abaixo.

No famoso botequim Novo Progresso, no bairro Rio Branco, deu-se há dias uma encrencagem d'arromba. Ao toque do piano, a senhorêta Xico festejava alli mais um botão que colhera no jardim de sua preciosa existencia, na phrase burilada e sonora do comandante da lancha Dita, cidadão Joaquim da Silva Mattos, que a encaizilhou num dos substanciosos brindes que fez á anniversáriante.

Havia muita gente na festa. As 10 horas e entusiasmo foi levado ao seu auge. O embarcadiço discursador estava radiante na deslumbrancia das deliciosas ilibações que fizera. De repente, dobrou a toda o cabo das arrelias. O delegado, tenente Paes Barreto, porém, pôz-lhe embargo ás violentas manobras, chamando-o a ordem.

O Zacharia, que estava fora, na rua, serenando o forró, vendo que tudo reentrara em seus eixos, devido a intervenção de auctoridade, continuou a assobiar a Dalila, burguezmente. Quando estava assim correndo a festa, nova encrencragem se deu: a senhorêta Marie Affonse, vulgo Mayote, enthusiasmou-se demais... O tenente Paes Barreto mandou guindal-a.

Trindad Mercado, outra graciosa senhorêta, conviva do baile, protestou formidavelmente contra a recambiação de sua companheira, temendo um futuro flagrante que talvez fosse lavrado contra a mesma, por tentativa de... attentação, com grave risco de sua liberdade por dilatados annos. A protestante arreliou se contra auctoridade enquanto o Zacharias, muito a surdinas, sahia pela visinhança em busca de quem lhe explicasse caso juridicamente. Pode ou não pode prender? Perguntava elle. Há ou não há motivo pra o flagrante? Insistia com ares acadêmicos. Em frente ao 6 de agosto alguém sopro-lhe ao ouvido uma resposta que o deixou estupefacto. Zacharias abandonou a causa...

Mas... vistos os autos do ocorrido, foi essa: Mayotte e Trinidad sejam mettidas em custódia por 24 horas consecutivas de acordo com o código, constituição e demais leis do paiz. Como não se conformasse com tal decisão, o exaltado commandante da Dita, a favor das pacientes, interpoz immediatamente habeas corpus, sendo este recebido apenas no efeito recambiativo.

Sentença final: os três – recorridas e recorrente – foram sem mais agravo para o novo xilindró da polícia, onde cumpriram a pena e pagaram as custas ao... carcereiro (FOLHA DO ACRE, 17/09/1911).

Océlio de Medeiros (1917-2008), décadas depois adquiriu fama de boêmio contumaz e farrista no Segundo Distrito, mas não de malandro e vadio, pois não era "um qualquer". Era figura conhecida, funcionário público e com "endereço certo e sabido", afirma que nessa região da cidade "estão as pensões, as casas de jogos, o beco do meretrício e o Hotel Madri". Esse lado da cidade, na sua visão, contrastava com o Primeiro Distrito, do outro lado do Rio Acre: local ordeiro e pacato, respeitável e pacifico, pois ali estão localizados "o Palácio do governo, a Matriz, o Fórum a Polícia, o Obelisco (...) aí moram as principais famílias". Uma cidade dividida, não só pelo rio. Um lado bom, moralista e respeitável; o outro, mau, degradante, cheio de vícios e perdições.

Francisco Bento da Silva e Sérgio Roberto Gomes de Souza são professores do curso de História da Ufac. Assinam a coluna “Aconteceu…”, no jornal Página 20.

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