domingo, 10 de março de 2013

O sanitarismo desembarca na Amazônia

Pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz na cidade de Rio Branco - AC (1912 – 1913)

Fonte: FIOCRUZ

Fonte: FIOCRUZ

Francisco Bento da Silva 
Sérgio Roberto Gomes de Souza

No dia 17 de agosto de 1912 a Superintendência da Defesa da Borracha¹ assinou contrato com o médico sanitarista Oswaldo Cruz para que fossem realizados estudos sobre as condições médico-sanitárias do Vale do Amazonas, dando origem a uma expedição científica desenvolvida por uma comissão composta pelos médicos Carlos Chagas, membro do Instituto Oswaldo Cruz e encarregado de liderar a expedição; Pacheco Leão, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e João Pedro de Albuquerque, da Diretoria Geral de Saúde Pública.

Os trabalhos iniciaram no dia 12 de outubro de 1912, com a comissão partindo de Manaus para percorrer os rios Solimões, Juruá, Purus, Acre, Iaco, Negro e baixo Rio Branco. A viagem pela Amazônia terminou em março de 1913 e resultou na elaboração de um minucioso relatório que foi encaminhado ao ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, Pedro de Toledo e, posteriormente, publicado no dia 11 de setembro de 1913. O documento, composto por cinquenta e duas páginas, tem conteúdo bastante diversificado. Além de informações sobre as condições sanitárias da região, traz relatos sobre hábitos alimentares de seus habitantes, organização espacial dos núcleos urbanos e seringais e descrições sobre a arquitetura local.

O relatório de 1913 não precisa a data em que a comissão chegou à cidade de Rio Branco, capital do então Departamento do Alto Acre, onde permaneceu pelo período de dez dias. É possível presumir que o desembarque tenha ocorrido na segunda quinzena do mês de dezembro de 1912, tendo em vista que no dia 18 do mesmo mês estavam os médicos no seringal redenção e em 6 de janeiro de 1913 aportavam na cidade de Xapuri.

Leia também: Carlos Chagas passou por Xapuri em 1913.

De acordo com os sanitaristas, a população de Rio Branco em 1912 era de aproximadamente 2.000 habitantes. O distrito de Penápolis foi apontado, à época, como um local onde "as casas apresentavam-se bastante confortáveis, obedecendo a certos moldes de arquitetura e distribuídas em ruas bem orientadas" (IOC, 1913, p. 20). Os elogios, no entanto, foram seguidos de críticas a estrutura dos prédios onde funcionavam as sedes dos principais órgãos da administração local: "Os edifícios da administração federal em Penápolis, que constam da sede administrativa da Prefeitura e da residência particular do prefeito são construídos de madeira, deixando muito a desejar como instalações de um governo" (IOC, 1913, p. 20). Na sequência, porem, ressaltam os sanitaristas que "satisfazem as condições atuais do regime administrativo ali adotado" (IOC, 1913, p. 20). A afirmação parece expressar certa harmonia entre os "decadentes" prédios públicos e o restante do cenário que compunha a cidade. Já o distrito de Empresa foi caracterizado como um espaço onde pulsava de forma mais intensa a vida comercial, "havendo ali várias casas de negócio" (IOC, 1913, p. 20). Empresa foi descrita como uma região situada em uma área mais baixa que Penápolis e recortada por igarapés, o que fazia com que seus habitantes fossem atormentados com a presença de "culicídios", termo utilizado para denominar os mosquitos, que se aproveitavam das águas acumuladas nos períodos de vazante para desenvolver seu ciclo reprodutivo. O problema foi descrito como de "fácil resolução", já que não seriam necessários grandes investimentos para sua resolução:

Seria sem dúvida bastante fácil melhorar as condições sanitárias do bairro da Empresa, por meio de serviços de pequena hidrografia sanitária, relativamente pouco dispendiosos. Poder-se-ia com 2 ou 3 sistemas de valas de drenagem bem orientados, desviar para o rio o excesso de águas dos igarapés, conseguindo-se deste modo um dissecamento de solo satisfatório (IOC, 1913, p. 20).

Preocuparam-se os sanitaristas com as dificuldades em adquirir alimentos, que tinham os moradores de Rio Branco. O abastecimento da cidade, assim como de todo o Departamento do Alto Acre, dava-se somente no período das chuvas quando os rios da região adquiriam condições de navegabilidade, ocorrendo durante a estiagem o desabastecimento e consequente aumento dos preços. Os prefeitos departamentais do Território do Acre vinculavam os problemas de abastecimento às precárias condições das vias de acesso e comunicação, tanto que elaboraram e assinaram documento dirigido ao Ministro de Aviação e Obras públicas, Dr. José Barbosa Gonçalves, solicitando urgentemente ações de desobstrução dos rios e recuperação de estradas, conforme matéria do Jornal Cruzeiro do Sul, na sua edição de nº 275 de agosto de 1913.

Apesar das dificuldades de abastecimento e a carestia, os médicos da comissão descartaram qualquer possibilidade de relacionar os problemas de saúde com os hábitos alimentares da região. Em um trecho do relatório chegam a afirmar que "a comissão conhece zonas do interior nas quais a alimentação das classes pobres, dos habitantes do campo, é inferior a dos seringueiros do Acre" (IOC, 1913, p. 21). Um dos fatores que pode ter influenciado na construção de tal juízo, foi a constatação da existência, na cidade de Rio Branco, de atividades agrícolas, já que fizeram referência à colônias agrícolas instaladas pela administração local e o governo federal, como observe-se na afirmação a seguir:

Na cidade de Rio Branco existe um começo bem apreciável de agricultura, havendo a 2 ou 3 quilômetros da cidade uma colônia agrícola com grandes plantações de milho, mandioca, feijão etc. Esta colônia foi instalada pela atual administração que ali concede favores aos colonos, dando-lhes ainda o título de posse dos terrenos para trabalhos agrícolas. O Ministério da Agricultura mantém também em Rio Branco um Campo de Experiências (IOC, 1913, p. 21)

Um olhar mais atento ao relatório possibilita que sejam encontradas contradições nas afirmações dos sanitaristas. Mesmo ressaltando que existia na cidade uma considerável produção agrícola e "um matadouro de instalação aceitável, sendo sacrificado um boi diariamente" (IOC, 1913, p. 21), reconheceram que estes gêneros eram restritos aos que possuíam melhores condições financeiras. A maioria da população limitava sua dieta de proteínas ao consumo de carne-seca, também conhecida na região como "jabá". Observe-se que não era incomum a venda de conservas e carne-seca estragadas. Oswaldo cruz, quando esteve a serviço da Madeira Mamoré Railway, no ano de 1910 fez o seguinte relato sobre como os mais pobres sofriam com os malogros dos comerciantes na Amazônia:

(...) a fraude vai a tal ponto que as casas de importação de conservas tem um empregado denominado 'caixeiro de solda' e cujo mister consiste em furar as latas deformadas pelos gases da putrefação, a fim de dar saída a esses e soldar a abertura feita. (CRUZ, 1910, p. 13)

A tradição de venda e consumo de conservas estragadas no Acre e em diversas outras áreas da Amazônia, não pareceu ser suficiente para explicar o número elevado de doentes que encontraram em Rio Branco. Segundo os sanitaristas: "Nem pode a comissão ouvir sem repugnância atribuir-se à deficiência de alimentação e a má qualidade dos gêneros alimentícios a grande letalidade do Acre e a condição precária de saúde dos habitantes dessa região" (IOC, 1913, p. 21). O problema mesmo era o impaludismo, somado a falta de assistência médica regular para a população, principalmente a mais pobre e a não aplicação das medidas profiláticas necessárias (IOC, 1913, p. 22).

Isso não significa que não existissem profissionais médicos na capital do Departamento. Rio Branco contava em 1913 com quatro médicos, sendo um deles do quadro da Força Federal (IOC, 1913, p. 21). É possível identificar esses profissionais através de anúncios de jornais do período, sendo eles J. Fabiano Alves, capacitado, segundo a publicação, para a realização de operações, partos e tratamento de febres em geral; Leorne Menescal, apresentado como habilitado para a prática de "operações"; Domingues Carneiro, que atendia pacientes com moléstias do sangue, tuberculose pulmonar, sífilis e moléstias da via urinária e Franklin Braga, grafado no anúncio como médico militar servindo na Companhia estabelecida no Departamento Além destes, publicaram anúncios o Dr. J. C. Fontinelli, com residência no seringal Iracema e a Drª Falcão, que exercia a clínica em um barracão localizado no seringal Aquidaban 2. Apesar dos médicos da Comissão classificarem seus "colegas" que atuavam em Rio Branco como "altruístas, salientando-se entre eles neste particular, o Dr. Domingues Carneiro, deixaram claro que inexistia na cidade atendimento médico gratuito, subsidiado com recursos públicos (IOC, 1913, p. 21), o que levava a população a buscar outras práticas de cura. Este seria um dos motivos que, segundo os sanitaristas, contribuía de forma muito intensa para transformar o rio Acre em "campeão da morte" e o Território do Acre em um dos maiores focos mórbidos da Amazônia (IOC, 1913, p. 22). No relatório não aparecem dados concretos que justifiquem o "sinistro" título que o Acre recebera, com os sanitaristas apenas afirmando que "tanto pelo número como pela variedade de casos mórbidos, foi Rio Branco o centro que melhor habilitou a comissão para um juízo exato sobre a patologia dessa região (IOC, 1913, p. 22).

Bibliografia
  1. Relatório sobre as Condições Médico-Sanitárias do Vale do Amazonas apresentado ao Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio Pedro de Toledo, pelo Dr. Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, typ. Do Jornal do Comércio, de Rodrigues& C. 03.
  2. Jornal Folha do Acre, Rio Branco – AC, 18 de fevereiro de 1912, ano II, nº 67.

Os autores dão professores do curso de História da Ufac. Escrevem aos domingos na coluna Aconteceu…, do jornal Página 20.

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