José Cláudio Mota Porfiro*
E quando a injustiça se levanta, o poeta incansável não cala e a sua pena fala e grita, a plenos pulmões, clamando revoltada contra os imorais. E brande a espada que é a arma e a arma que é o verbo que, se bem conjugado, a pessoa, a tempo e a bom modo, fere feito o açoite ardente no lombo também daqueles que vomitam palavras desgovernadas, a torto e a direito, contra os mais justos dentre todos os justos da vida minha. Levanta-te, ó bardo, e vai em defesa da verdade nua e crua saída da memória das almas boas que houveram por bem fazer tanto bem a ti.
Em Xapuri, conheci João e Maria, que também eram Dias de Figueiredo. Conheci Eurico e Linda, que também eram Gomes Fonseca. Tenho-os como meus avós longínquos, e muito próximos, posto que eram vizinhos da rua 24 de Janeiro e da Floriano Peixoto. São eles, junto com os meus parentes, seus amigos do início do século XX, meus respeitáveis mortos que velam pelas nossas melhores ações, lá em cima, muito acima, onde Deus houve por bem lhes acolher.
Maria era parteira e viu muitos dos nossos nascerem. E, num dos dias de abril de 1963, ouviu gemidos de dor no meio da madrugada silenciosa. Era minha mãe que dava à luz o Jorge, um irmão que também partiu para outros mundos preferidos de Deus. E à cabeceira úmida e quente onde foi feito o parto estava uma mulher a quem o meu povo deve de tudo um pouco. Portava ela à mão um copo com um remédio que aliviaria as tensões da parturiente. Era a Euri, de mim, um pouco de tudo, de professora a mãe e irmã e tia e meu exemplo... Ó céus! Ó candura em pessoa!
Euri é filha de Eurico e Linda. Ele, oriundo de Portugal, sempre risonho, sempre de bem com a vida até que a morte o levou. Ela, do lar, especialista em criar filhos e filhas prendados e úteis à comunidade.
E dizem que já se nasce devendo. Comigo não aconteceu diferente. A primeira professora, Enedina Sant’Ana, atirou ao fogo a palmatória que me acalmava. Orfisa Camelo Bacelar, do quarto ano primário, ensinava-me, gratuitamente, Matemática, enquanto quebrava castanhas na sua fabriqueta de sabão em barra. E Euri, do ginásio e do pedagógico, me fez aprender datilografia, de graça, numa escola sua montada na varanda de casa... Em verdade, meus pais não tinham posses e elas o percebiam, e queriam ajudar. E eu sou feliz, e nós lá de casa somos muito felizes porque tais mulheres fizeram por mim e por todos tanta coisa boa. Também, pudera! Deus as enviou para fazê-lo.
Este ano, na festa do Padroeiro São Sebastião, permanecemos, eu e meu irmão Marcos, quatro dias na terra natal. Por três vezes tentamos reencontrar a musa da minha didática, a Professora Euri. Se íamos à residência, estava ela na Igreja organizando a festa. Se íamos à Igreja, ela estava ocupada, inclusive, prestando assessoria de alta competência ao Padre Chagas. Enfim, no dia do santo, findamos por encontrá-la depois da procissão. Abracei-a carinhosamente e ela perguntou por minha mãe. Quanta meiguice! Tanta solicitude! Quanta dedicação! Tanto amor!
Júlio Figueiredo, esposo de Euri, era filho de Maria e João. Foi prefeito de Xapuri entre o final dos anos sessenta e início dos setenta do século passado. Aos doze anos, eu já atijolava ruas e era servente de pedreiro. E o homem trabalhou, sim, na medida do possível, conforme registros da revista Momento, edição de 1969, que faz parte dos meus arquivos.
“Ao assumir a Prefeitura Municipal, em 15 de novembro de 1966, Júlio Dias de Figueiredo voltou sua atenção para o trinômio Educação, Energia e Obras públicas.”
Reabriu dezesseis escolas que se encontravam fechadas, inclusive o Ginásio Antero Soares Bezerra, construiu a Escola Profª. Luzia Otávio Veloso, dentre outras na zona rural. Recuperou os serviços de energia elétrica e doou terras do município para a construção da termelétrica da Eletroacre. Durante o seu mandato, foi construída a caixa d’água que ainda hoje serve à população. Foram construídas quatro pontes no interior, inclusive, a ponte do Bosque, e ainda foram feitos serviços de conservação nas existentes. Recuperou o prédio da Prefeitura Municipal, adquiriu terreno para a Câmara dos Vereadores. Trabalhou na pavimentação das ruas 6 de Agosto, 17 de Novembro, Coronel Brandão, Batista de Moraes e 24 de Janeiro. Construiu uma olaria para a produção dos tijolos utilizados na pavimentação das ruas. Recuperou o Posto de Puericultura.
Para que dizer que um homem desses roubou o erário público? As verbas eram mínimas para um rincão enfiado no meio da Amazônia. Se vivo Júlio estivesse, aqueles que lançaram as acusações não teriam coragem para tal.
Ofensas por acaso dirigidas aos membros mortos ou vivos da minha família estarão causando danos morais à tradição da gente pobre e trabalhadora que nós sempre fomos. Em casos como este, o Ministério Público seria acionado dentro da maior urgência possível, tudo sob o amparo da eficácia e da competência de um advogado, procurador federal aposentado, filho do meu pai e da minha mãe.
Deixa-me perplexo o fato de a canalha ofender pessoas mortas a quem sequer conheceu verdadeiramente. O respeito maior é o justo merecimento dos que deram toda uma vida por uma cidade, pelos seus filhos e pelos filhos dos outros que eram considerados filhos seus. Entristeço porque a imoralidade sobe as escadas dos dignos e os deixam pensantes acerca dos porquês que poderiam justificar o injustificável achincalhamento. Todavia, fico feliz por poder dar a mão amiga à memória dos que foram vilipendiados pela sordidez de um crápula que não me faz bem sequer lembrar o nome.
*Cronista
◙ Crônica publicada no jornal Página 20, no dia 28 de maio de 2006. José Cláudio Mota Porfiro acaba de lançar "Janelas do Tempo", livro de crônicas publicadas pelo jornal entre os anos de 2005 e 2006.
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