segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Padres caçadores

Pitter Lucena*

Os padres José Maria Carneiro de Lima, e seu irmão Pelegrino, foram figuras que jamais serão esquecidas no Acre. Suas estórias e, principalmente seus sermões nas missas de domingo, lotavam a pequena igreja do município de Plácido de Castro, durante mais de 40 anos. Padre José era irmão mais novo e mais extrovertido. Pelegrino, mais sério, sisudo, tinha como doutrina o conservadorismo da igreja católica. Da Ordem Servos de Maria, morreram na década de 90. Suas estórias, entretanto, continuam vivas nas mentes e corações de milhares de acreanos que conviveram com eles por mais de quatro décadas.

Nascidos no interior do Ceará, ainda adolescentes decidiram pela vida religiosa e os ensinamentos de Jesus em ajudar os mais necessitados. Concluído o curso de Teologia na capital cearense, seguiram para a Itália terminar os estudos. Durante a Segunda Guerra Mundial, retornaram ao Brasil optando pela cidade de Plácido de Castro, um pequeno povoado no interior do Acre, para viverem a vida sacerdotal. Não eram difíceis de serem identificados em meio a uma multidão. Desde o ordenamento no Vaticano, nunca mais deixaram de usar a batina preta, fosse para rezar missa, casamento, batizar, cultivar a terra, caçar ou pescar. A mesma roupa vestiam para uma simples reunião com agricultores, como para encontros com o Papa em Roma. Os amigos mais próximos dos sacerdotes afirmavam que José e Pelegrino dormiam com a “roupa de trabalho”.

José e Pelegrino se gabavam de serem excelentes caçadores. Não só de fiéis, mas, de animais da mata também. Caçavam por prazer, diversão. À época não havia o Ibama para pegar no pé de ninguém. Durante as desobrigas nos seringais - algumas duravam meses - os sacerdotes não deixavam escapar uma boa caçada. Os bichos serviam de alimento na casa onde estavam hospedados. O clima por onde passavam era sempre de muita alegria. A missão deles era levar a palavra de Deus aos seringueiros, casar e batizar seus filhos, enfim, ensinar a mensagem da paz e amor ao próximo, mesmo se esse próximo estivesse o mais distante possível.

Aos domingos, a igreja estava sempre lotada de fiéis para ouvir o sermão da semana. Em vez do sermão de praxe, contavam em detalhes as caçadas feitas durante o período das desobrigas. Nos detalhes, eles aumentavam um pouco de tudo. Se um veado pesava 20 quilos, faziam questão em afirmar que ultrapassava aos 80 ou 100. Chegaram a contar certa vez que com apenas um tiro de espingarda mataram dois animais ferozes. Essas estórias ninguém discutia. Imagine discutir a caçada dos padres, que tinham a fama de grandes contadores de estórias!

Numa caçada, padre José afirmava que seus dois cães de caça não conseguiam encurralar uma paca. Depois de uma hora de muita correria, ele avistou rapidamente que a paca tinha oito pernas. Isto mesmo, oito patas! Desse jeito, os cães com apenas quatro patas, nunca iriam pegar aquele animal estranho. José pensou, pensou e pimba!: encontrou a solução. Chamou os dois cães e amarrou um de costas no outro. Assim, quando um estivesse cansado dava um pulinho, se virava no ar, e o outro continuava a perseguição. Dito e feito. Em menos de meia hora a paca estava no jamaxi do padre.

Em outra oportunidade, José e Pelegrino foram chamados às pressas para uma reunião com o bispo em Rio Branco. Os dois tinham um jipe velho que utilizavam nos trabalhos religiosos na zona rural. Apressados entraram no jipe e saíram quase voando pela a estrada que à época não tinha asfalto. Contam eles que, numa curva muito fechada quase cometem um grave acidente. Por conta da alta velocidade, ao fazer a curva, tiverem muita sorte de não bater na traseira do próprio jipe que dirigiam. Escaparam do acidente por milagre.

Causos a parte, José e Pelegrino foram os maiores comunicadores na vida sacerdotal e no serviço de evangelização da Amazônia e do Acre. Nos seringais, nas colônias, onde estivessem, incorporaram o espírito da humildade para se comunicar. Com muita sapiência souberam se aproximar e evangelizar um povo falando das coisas da floresta, dos problemas do dia-a-dia. Trouxeram para junto de si a cultura do homem amazônico e, através dessa cultura, geraram mitos na construção do caminho entre o homem e Deus.

Esses dois sacerdotes dedicados aos mais necessitados, devem estar alegrando o céu com essas e outras estórias dos seringais da Amazônia, que conheceram como ninguém, desde os mistérios da mata, os rios como o Abunã, seringueiros e ribeirinhos. Levaram consigo para o céu, os segredos de sua gente e os encantos da floresta que tanto amaram. Eles foram e deixaram saudades, muitas saudades.

*Pitter Lucena é jornalista acreano.

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