José Cláudio Mota Porfiro
Não estou ainda para escrever reminiscências. Sou apenas um moço que já houve por bem atravessar meio século de vida bem vivida. Todavia, há dias em que umas lembranças muito ternas me vêm à memória. Às vezes me emociono. Às vezes divago um tanto, mas findo por retratá-las em papel, em meu nome e em homenagem a tantos quantos povoaram e tornaram realidade os meus sonhos juvenis.
Numa primeira época da infância longínqua, andei sobre pernas-de-pau lá na querida terrinha, com a finalidade única de olhar por cima das altas janelas dos turcos e portugueses vizinhos nossos. Os portugueses tinham vindo, sim, de Portugal, mas os turcos não eram turcos. Eram libaneses ou sírios. Os primeiros, de Beiruth, sempre cordiais, às vezes sorridentes. Os outros permaneciam irritadiços todos os dias da vida encarquilhada sob o peso de uma tradição de lutas. Haredine acruta! Eis a expressão mais freqüente nas bocas e nos lábios dos regatões oriundos das cercanias de Damasco, como lembra a Senhora Jalul.
Morávamos todos num casarão construído em 1913 pelo avô materno, Raimundo Calixto. Erguido em madeira de lei, o pavilhão era conjugado e dividido em quatro residências de tamanho razoável na Rua 24 de Janeiro, aquela que parte dA Limitada rumo à Matriz de São Sebastião. Até os nove ou dez anos, não conhecia muito além destes limites impostos pela avó cearense de maus bofes, rude e operante, sempre com uma tira de couro cru sobre o ombro, como um capataz a arregimentar os quatro ou cinco moleques feitos e bem feitos por papai.
O mais velho dos lá de casa dormia em rede porque até hoje gosta. O outro dormia cheirando a avó. Eu tinha minha cama patente de solteiro. E os dois mais novos iam para o quarto principal. Certo é que, às nove da noite, ninguém estava acordado e, às cinco da matina, todos já estavam de pé, com os olhos arregalados esperando abocanhar uma ruma do pão que buscávamos na Padaria do Jorge Farofa Eluan, onde papai fazia umas extras.
Às terças ou quartas, de posse de uma espingarda calibre 12, papai, um verdadeiro bravo, partia de jeep, com o Padre José, para as caçadas nos seringais mais próximos, de onde trazia carne de caça suficiente para aplacar o nosso apetite de gigantes, e para a alimentação das freiras e das internas do nosso Colégio Divina Providência.
Vivia por ali, então, um moço, ainda em calções listados, criado pela esforçada avó. Ele atendia pelo pomposo nome de José Edmilson Gomes de Figueiredo. Os mais velhos logo o alcunharam Bacana. Só não fazia chover simplesmente porque não queria. O garoto era deveras saudável, no linguajar dos melhores manuais da moderna psicologia infantil. Certo é que, num daqueles dias distantes, já filho de prefeito, o doidivanas quis partir num circo só porque fazia umas acrobacias legais sobre uma bicicleta bem menor que ele. Todavia, o que mais me chamou a atenção foi um fator à parte.
Naqueles invernos drásticos, a chuva caía a cântaros. Em frente lá de casa, havia um pé de jenipapo e, sob a frondosa árvore, a água se avolumava. Da minha janela, só observava a molecada, posto que não conseguia fugir das vistas de Mariinha, a minha avó mais valente do mundo. Um dia, o Bacana, muito à frente do nosso tempo, olhou para a lagoa, foi buscar na casa da avó (dele) uma tábua de lavar roupa, amarrou uma corda a uma das extremidades desta e, de pé sobre a mesma, mandou que o Antônio Onça puxasse a prancha correndo pela beira da água. Certo é que o meu bom Bacana, grande amigo de infância, saiu fagueiro a deslizar fazendo marola. Depois vi muitos outros surfistas pela vida afora, mas igual a ele, pela originalidade, nunca mais. Hoje o personagem em apreço vive em Brasília, onde é conhecido pelo sugestivo epíteto de Mapinguari de Xapuri.
Depois, já nos anos setenta, este aprendiz de dublê cursava o ensino médio, à noite. De dia, como não havia emprego na sombra pra filho de pobre, trabalhava de servente de pedreiro calçando as ruas da cidade junto a uns parceiros muito sacanas que atendiam pelos nomes de Rastereiro, Tigurão, João Uchôa, Aurélio e Antonio Maria. Dava até para tirar uma boa grana e ajudar o Gibiri que, por aqueles tempos, já não agüentava se comportar tão bem sob o peso de três ou quatro pélas de borracha, como nos velhos tempos. Também, este fortuito escriba de linhas tortas já era rapazinho e, em altas horas, ingeria uns líquidos jamais recomendados pela mais verdadeira dentre todas as avós cearenses.
Razoável nas artes da Matemática, era muito melhor em Português, História, Geografia e Inglês. Por conta disto, tinha sempre um ou outro a pedir ajuda nas dificuldades que eram muitas, mesmo para quem nada fazia. É claro que arranjar namoradas já não se tornava tão difícil.
E, sob o sol causticante, numa certa tarde, o trabalho seguia na rua Floriano Peixoto, ali mais ou menos em frente ao Fórum... Recordo que, diariamente, desciam pela avenida principal, a Coronel Brandão, duas encantadoras moças de pele branca e cabelos louros. Os parceiros da faina já o sabiam e, quando as avistavam, faziam aceno e este mulato corria a se esconder para que as duas não o vissem trabalhando, suado, fedido, com a camisa amarrada na cabeça para que o sol não lhe queimasse o cabelo.
Eis que, num desses dias, os camaradas acharam por bem não avisar e, quando avistei as duas louras, já não havia como fugir... Mas não as consegui encarar, de forma alguma. Uma vergonha dessas nunca houvera passado. E o trauma foi tão medonho que, à noite, não fui para a aula.
Todavia, o inesperado ainda não acontecera. No outro dia, fui chamado a conversar com uma das minhas professoras que, ao lado das musas, disse a mim que todos sentiam imenso orgulho em caminhar ao lado de um adolescente trabalhador tão aplicado nos estudos quanto os melhores do colégio.
Sem querer ser piegas, e já sendo, afirmo ser por fatos como estes que, hoje, tenho tanto orgulho de vir de onde vim e de ainda preservar a amizade de pessoas que me fizeram tão bem. Graças a Deus!
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