Um sujeito brilhante chamado Cleomilton Filho provocou polêmica na cidade de Cruzeiro do Sul, no oeste do Acre, sua terra natal, com a crônica “A Dogville onde nasci”, publicada em um bom blog, assinado por ele mesmo, intitulado Quod me nutrit me destruit, expressão latina carregada no corpo pela atriz Angelina Jolie, que significa: O que me nutre me destrói.
Com requintes de sinceridade e cores fortes de uma suposta revolta não exprimida, o autor do texto revela aquilo que todos sabem, vêem e fingem não ver na realidade da vida social de todas as cidades acreanas, por que não dizer brasileiras, utilizando como pano de fundo o enredo do filme Dogville, produção de 2003, dirigida por Lars von Triere e estrelado por Nicole Kidman e Paul Bettany.
O filme faz parte da trilogia "EUA Terra de Oportunidades", tendo como seqüência Manderley (2005) e Wasington (2007). Dogville é, segundo especialistas no assunto, uma paródia moral focada na crítica à sociedade de classes. Mostra o quanto pode ser podre e corrompido o cerne da sociedade humana, que pode ser imaginada em qualquer lugar, em qualquer tempo.
O texto do estudante, repercutido pelo blog do jornalista cruzeirense Altino Machado - o mais lido do Acre - causou grande fúria e um tsunami de mensagens agressivas atingiu a caixa de entrada do jovem Cleomilton, que escreve com maestria raras vezes vista por essas bandas. Ora, a reação virulenta da maior parte dos leitores, na maioria anônimos, só confirma que a carapuça da metáfora utilizada pelo autor milimetricamente embocou na cabeça da sociedade de Cruzeiro do Sul.
Na Dogville em que vivo, a mesma carapuça bem melhor se ajustaria à cabeça da não diferente sociedade que aqui rumina seu tolo orgulho e ignorância. As regras e os dogmas que ditam a vida e o comportamento da fictícia Dogville são os mesmos que determinam o vicioso modo de viver por aqui também. A corrupção, o tráfico de drogas, a exploração sexual de crianças e adolescentes e o quid pro quo são a tônica da realidade local não diferente, é claro, de outros lugares do Brasil, mas que nas pequenas cidades se manifesta de forma mais evidente.
Na Dogville da margem do rio Acre os valores mais básicos transmitidos pelas gerações passadas parecem ter se perdido no tempo, açoitados pela ganância desmedida, pelo apego ao dinheiro fácil e pela acirrada disputa política que têm como intuito único a mitigação da sede pelo poder, não para usá-lo em prol da sociedade, mas em seu próprio benefício e daqueles que lhes cercam. Aqui há pessoas que não sobrevivem sem um elo às tetas públicas e por ele choram, esperneiam, ameaçam àqueles que entendem por adversários, vendem a alma ao diabo e passam por cima de tudo e de todos.
O que pensar de uma sociedade que não exige dos seus representantes sequer decência e retidão em seu comportamento diante do poder e responsabilidade que exercem? O que esperar de um povo de uma pequena cidade que perde a capacidade de se indignar com atitudes que confrontam os velhos e tradicionais costumes (se é que um dia existiram) e com os interesses da coletividade? Até quando os olhos ficarão fechados e as bocas cerradas para as evidências de que estamos cercados por criminosos e somos guiados e defendidos por ladrões, estupradores e traficantes de drogas?
Longe de creditar à minha terra os mesmos predicados dados por Cleomilton à sua Cruzeiro do Sul, mesmo compreendendo o objetivo de suas linhas e a mensagem que explica ter tentado fazer entendida. A cidade é histórica, muita coisa boa, mesmo que simples, se fez por aqui e continua se fazendo, a maior parte das pessoas é honesta e trabalhadora, mas é certo que na Dogville daqui muito tem que ser feito para mudar a realidade que hoje adoece o presente e ameaça de morte o futuro. A começar por uma mudança radical na forma de conceber a vida e o mundo; abrir os olhos para a realidade e tentar lutar contra ela.
Em resposta aos ataques recebidos pelo conteúdo de sua escrita o estudante Cleomilton argumenta que seu “choque de realidade” não foi compreendido. Muito menos será aqui, onde a percepção da sociedade parece remontar a Idade da Pedra Lascada. Bordões como “fulano rouba, mas faz”, “beltrano é doido, mas trabalhador”, “entre um político louco e um ladrão, fico com a primeira opção”, “uma mão lava a outra” fazem parte do cotidiano dos que vivem submetidos à situação degradante e vergonhosa que domina a cidade. As pessoas enganam a si mesmas, iludidas com a retórica demagógica difundida como mantras, e banalizam atitudes e comportamentos antes considerados absurdos e inaceitáveis.
A população assiste resignada ao show de horrores em que se tornou a vida por aqui. As negociatas na prefeitura, os acordos na câmara, as licitações não devidamente publicadas e sempre vencidas pelas mesmas empresas, os conchavos, as denúncias não formalizadas, o policial que pratica pesca predatória, o vereador que alicia, a autoridade que violenta a moral e os costumes, o menor que abusa da criança, as “mercadorias” entregues na calada da noite, as ruas esburacadas, a falta de iluminação pública e de dignidade, o filho do vereador que recebe o Bolsa Família, as benfeitorias com dinheiro público usadas para cooptar o voto, e por aí vai. Essa é a rotina da Dogville daqui, nem melhor nem pior que as muitas outras espalhadas pelo Brasil afora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário