domingo, 26 de fevereiro de 2012

Redemoinhos

tornado

José Cláudio Mota Porfiro

Fui à missa no mesmo dia da chegada, à noite. Estive presente ainda à celebração nos dias 17, 18 e 19. De lá, pelas três noites consecutivas, propus-me tomar um chocolate nas ruas da beira do rio, mas findei me achegando do bar do Dino. No primeiro dia, lá encontrei o Tatu, o moço de convés e, com ele, bebi umas quatro ou cinco cervejas. Depois, partimos para o Bilhar Clube, onde um baile se desenrolou até as três.

Às dez do dia 17, já estou em frente à igreja apreciando o movimento das famílias de seringueiros que chegam de todos os lados, em cima de burros, em carros de boi, carregando sacos de encauchado, feito formigas de roça que caminham para todos os sentidos debaixo de pesos que ultrapassam até os limites do quão pesado ou leve é o seu próprio corpo.

Penso que este Padre Felipe me parece uma boa pessoa. Se for o caso  - se ele tiver tempo - trocaremos uns dedos de prosa. Gosto muito de conversar com os religiosos. Apesar de algumas leituras mais à esquerda, guardo comigo este costume desde as minhas origens cearenses.

Ademais, tenho-me enquanto uma pessoa capaz de, um dia, colocar em papel as impressões que levo do povo do Acre e o seu dilema amazônico.

O homem é italiano e, enquanto o espero numa antessala da casa paroquial, vem à memória o que me disse o Luís Amado, com quem cheguei a ter alguma amizade na escola superior, em Belém.

O ambiente eclesiástico, tranquilo, me permite viajar no tempo. Vêm à memória mil lembranças de tempos idos.

A mãe do português Luís Amado era siciliana e, segundo ele próprio, lá ela havia passado por poucas e boas, em vista do exercício da profissão mais antiga do mundo nos portos da Calábria. Ali ela conheceu todos os tipos humanos. Por isto, as más impressões de uma prostituta acerca da humanidade se impregnaram na cabeça do filho, uma espécie de Oliver Twist à europeia.

Mas ele não era um sujeito desumanizado. Não tinha traumas e, muito pelo contrário, tornava-se um falastrão quando colocava ao nosso dispor uma análise muito sua acerca do mundo e dos homens.

Gina, a mãe do Luís, depois, fugiu para Portugal porque, quase todos os dias, depois de cumprir o seu papel em camas fétidas, ainda apanhava dos homens vindos dos mais distantes portos do mundo.

Para ele, os italianos são todos uns escroques. Aliás, para esse mal Amado, três quartos da humanidade significa pouquíssima coisa. Conforme os comentários feitos por ele, e por mim anotados em caderneta de campo, o humano nascido na Itália, com raras exceções, é inconfiável, mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o fármaco, é escorregadio nas negociações e coerente apenas em trocar de bandeira a cada vento.

Sobre napolitanos e sicilianos -  mulatos não por erro de mães meretrizes - mas pela história das gerações, diz-se terem nascido de cruzamentos entre levantinos desleais, árabes suarentos e ostrogodos degenerados, que herdaram o pior dos seus antepassados híbridos: dos sarracenos a indolência, dos suevos a ferocidade, dos gregos a irresolução e o gosto por se perder em tagarelices, até procurar cabelo em ovo.

Para o Luís, os judeus têm olhos invisíveis que nos espreitam. Os sorrisos maldosos, aqueles lábios de hiena arreganhados sobre os dentes, aqueles olhares pesados, infectos, embrutecidos, aquelas dobras entre nariz e lábios sempre inquietas, escavadas pelo ódio, aquele nariz que parece o grande bico de uma ave do gelo, tudo é de má recomendação. Fora os olhos que giram febris nas pupilas da cor de pão tostado e revelam enfermidades do fígado corrompido por um ódio de vinte séculos, que se apertam em pequenas rugas e se acentuam com a idade. Quando sorri, as pálpebras inchadas se cerram a ponto de deixarem apenas uma linha imperceptível, sinal de astúcia, para uns, ou de luxúria, dizem os demais.

O judeu, além de vaidoso como um espanhol, é ignorante como um croata, cúpido quanto um sérvio, ingrato como um maltês, insolente como um cigano, sujo como um inglês, untuoso como um belga, autoritário como um prussiano e maldizente como um albanês, é adúltero por um cio irrefreável  -  resultado da circuncisão, que os torna mais eréteis, dizem eles.

Nenhuma boa recomendação o Amado faz com relação aos alemães. Trata-se do mais baixo nível concebível de humanidade. Um alemão produz em média o dobro das fezes de um francês. É a hiperatividade das funções intestinais, em detrimento das cerebrais, o que demonstra a sua inferioridade fisiológica. No tempo das invasões bárbaras, as hordas germânicas espalhavam nos caminhos e percursos das guerras montes descomunais de matéria fecal. Qualquer forasteiro rapidamente percebe quando ultrapassa a fronteira germânica pelo volume anormal de excrementos abandonados ao longo das estradas. É típico do alemão o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de um alemão contém vinte por cento de azoto, ao passo que a das outras raças, somente quinze.

O alemão vive em estado de perpétuo transtorno intestinal, resultante do excesso de cerveja e daquelas salsichas de porco com as quais se empanturra. Eles habitam aqueles ambientes fedorentos a sebo e a toucinho, até mesmo a dois, ele e ela, mãos apertadas em torno daquelas canecas de bebida, nariz com nariz, num bestial diálogo amoroso, como dois cães que se farejam, com as suas risadas fragorosas e deselegantes. Eles falam do seu espírito  -  geist  -  alemão, mas é o espírito da cerveja que os estupidifica desde jovens.

É verdade. O abuso da cerveja torna os alemães incapazes de ter a mínima ideia da sua vulgaridade, mas o superlativo da sua vulgaridade é que não se envergonham de ser alemães. Levam a sério um monge glutão e luxurioso como Lutero, só porque arruinou a Bíblia traduzindo-a para a língua deles.

Os alemães se consideram profundos porque a sua língua é vaga, não tem a clareza do português, por exemplo, e nunca diz exatamente o que deveria, de modo que nenhum alemão sabe jamais o que queria dizer - e toma essa incerteza por profundidade. Com os alemães é como com as mulheres, nunca se chega ao fundo.

As crises econômicas e financeiras rondarão para todo o sempre a nação francesa porque os franceses são extremamente preguiçosos, além de trapaceiros, pedantes, rancorosos, ciumentos, orgulhosos além de todos os limites - a ponto de pensarem que quem não é francês é um selvagem - e incapazes de aceitar críticas.

Para induzir um francês a reconhecer uma tara da sua corja, basta lhe falar mal de outro povo, por exemplo, “nós, poloneses, temos esse ou aquele defeito”. E, como não querem ficar atrás de ninguém, nem sequer no mal, eles reagem com “oh, não, aqui na França somos piores” e passam a difamar os franceses até notarem que você os apanhou na armadilha.

Os franceses não amam os seus semelhantes, nem quando tiram vantagem deles. Ninguém é tão mal educado como um taberneiro francês, que parece odiar os fregueses e desejar que não estivessem ali. São maus. Matam por tédio. É o único povo que durante vários anos manteve seus cidadãos ocupados em se cortarem reciprocamente as cabeças. E a sorte foi que Napoleão desviou-lhes a raiva para os de outras raças, enfileirando-os para destruir a Europa.

Acham que o mundo inteiro fala francês. Para eles, as memórias antigas de gente como Calígula, Cleópatra e Júlio César foram escritas em francês, quando qualquer criancinha sabe que a língua usada pelos eruditos na idade média era o latim. Os doutos franceses não fazem ideia de que outros povos falam de modo diferente do francês.

Talvez a ignorância seja efeito da sua avareza, o vício nacional que eles tomam por virtude e chamam de parcimônia. Vê-se a avareza pelos seus aposentos empoeirados, pela forma nunca refeita, pelas banheiras que remontam aos ancestrais, pelas escadas em caracol, de madeira instável, pra aproveitar sovinamente pouco espaço. Enxertem, como se faz com as plantas, um francês com um judeu de origem alemã e terão aquilo que temos, uma França eternamente à beira da ruína.

As mulheres fazem mal até de longe, é o que acha o Luís, sempre entre muitas gargalhadas, principalmente, depois que ele foi traído por uma zinha da Rua dos Inválidos. Segundo ele, alguns homens odeiam as mulheres apenas pelo pouco que sabem delas. E mais: nós não sabemos se os espíritos animais e o líquido genital são a mesma coisa, mas é certo que esses dois fluídos têm uma certa analogia. É por isto que, depois de uma boa noite de sexo, nós perdemos as forças, o corpo emagrece, o rosto empalidece, a memória se desfaz, a vista se enevoa, a voz se faz rouca, o sono é perturbado por sonhos irrequietos, sentem-se dores nos olhos e aparecem manchas vermelhas na face; alguns cospem matérias calcinadas, outros reclamam de prisão de ventre ou de emissões cada vez mais fétidas. Por fim, vem a cegueira.

Quanto aos padres, a opinião do nosso tratadista é que eles têm, em sua maioria, olhos fugidios, dentaduras estragadas, hálitos pesados e mãos suadas e libidinosas. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. O sujeito se faz frade só para viver no ócio e, entre os padres mais indignos, a Santa Sé escolhe os mais estúpidos e os faz bispos.

Conforme prega o Luís, você começa a ter os padres ao seu redor quando nasce, já no batizado. São depois reencontrados nas escolas. Estão depois no catecismo, na primeira comunhão e na crisma. Lá está o padre no dia do seu casamento a lhe dizer o que você deve fazer no quarto e, no dia seguinte, a lhe perguntar, para poder se excitar atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo. Enfim, segundo o nosso tratadista, a civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não houver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja.

Esse Luís é, na verdade, mais um dentre uns tantos escroques que se fizeram advogados na minha classe, em Belém.

A plenos pulmões, em meio às tertúlias dos acadêmicos paraenses, solenemente, bradava o Luís Amado:

- Os brasileiros são hoje, e serão para todo o sempre, o melhor povo da Terra. Prestem atenção! A cada dia tenho mais certeza do que advogo. Ainda escreverei uma tese sobre este tema.

José Cláudio Mota Porfiro é xapuriense, professor universitário, escritor, cronista…

Nenhum comentário: