domingo, 19 de fevereiro de 2012

Encantamento e surpresa

Ao contrário do que você acredita de pés juntos, o universo não gira em torno das vontades da sua virilha. Outros fatores influem no devir da humanidade. (Carlos Ruiz Zafón, em A sombra do vento).

Paisagem

José Cláudio Mota Porfiro

A efervescência da cidade nascente me impressiona deveras. Todo esse burburinho não revela o quanto Xapuri é pequena e conta, talvez, com umas doze ruas, no máximo. Melhor por aqui é que a palavra prosperidade ainda vigora, apesar dos tempos bicudos. Todos têm certeza de um futuro bastante promissor. Penso sobre quando o Einstein afirma mais ou menos que aquela pessoa que já não consegue sentir espanto nem surpresa está, por assim dizer, morta. Os seus olhos estão apagados.

Deixando um pouco o romantismo de lado e levando esta prosa por um realismo descontextualizado, conversamos  -  eu e o Eurico  -  sobre a economia da borracha que não anda muito bem, mas dá sinais de recuperação. Falamos dos elementos que compõem esta babel amazônica: sírios, libaneses, portugueses e nordestinos, cada qual fazendo a sua parte. Partilhamos um refresco de cupuaçu que vem do Café Dino, localizado em frente à loja de secos e molhados do Tomás. Leio jornais portugueses de dois meses passados. A guerra é uma questão de dias. Os lisboetas estão receosos por demais, como sempre, desde 1808, quando Napoleão os enxotou rumo ao Brasil com aquela cambada de fidalgos analfabetos e proxenetas.

- Vamos dar uma volta, ó meu amigo Melquíades? O Eurico nos acompanha. Aproveitamos que o sol já não incomoda e hás de conhecer alguns amigos também vindos de muito longe, da Europa e da Ásia, com medo das guerras. - É o convite que parte do Tomás num sotaque mais carregado que o do irmão.

- A minha folga vai até o dia 22. Estou à disposição dos senhores.

Voltamos à Farmácia Xapury, onde o Eurico apanha a sua famosa e única máquina de tirar retratos da cidade. Tudo será devidamente documentado, como eu já imaginara a partir do que me dissera o meu patrão. A mesa de gamão está ainda mais animada. Ao redor, está o Touffic Salim Abouache, dono do estabelecimento amplo onde vejo uma grande mesa de snooker e em frente do qual se desenrola o jogo. Também estão lá Jorge Eluan, Farizaire, Gatasse Kalume, Abdon Kamel e Felício Abrahão, dentre outros, todos sírios e libaneses, logo, amantes desse dito gamão, uma espécie de esporte nacional dos turcos. Conheço já uns tantos e sou apresentado aos demais.

A barba ruiva e fechada, devido aos meses no seringal, empresta-me um aspecto bastante respeitável, principalmente, depois que revelam o bacharel que sou, com diploma tirado em Belém. Estou, já, um deles, apesar da idade que não revelo, para não ser tido como um mero rapazola à procura de dotes.

Há, para surpresa minha, muito que ver e visitar.

Subimos a rua e passamos pela Casa Farizaire, pela loja A Limitada, ambas com amplos armazéns lotados de borracha. Pegamos a calçada que reinicia em frente ao estabelecimento do Tomás. O passeio é devagar e extremamente comentado pelos irmãos portugueses. Vem, aí, o comércio de Abrahão Felício e Filhos. Passamos na frente de um teatro municipal fechado e, parece-me, em obras de recuperação. Há, depois, a Casa Galo, de um português de nome Manoel Galo, a Hospedaria São Francisco, o armarinho do libanês Jamil Bestene Eluan, a loja muito bem montada do também libanês Sadala Koury, a barbearia de um outro que veio do Líbano, o senhor Abdon Kamel, a padaria de Jorge Eluan, brimo de Jamil, dentre outras... Do outro lado da rua está o belo rio ornado por uma margem tomada por pequenas canaranas que fazem o lugarejo ainda mais simpático... E o casario segue em frente numa mistura de estilos que vai do asiático ao português abrasileirado e ao rústico nordestino, é claro.

Há, em seguida, uma praça bem ajardinada no meio da qual está a estátua de Plácido de Castro, o homem que tomou na unha o Acre dos bolivianos, como dizem os nordestinos. Ao lado deste logradouro, está a Casa Branca, hoje tornada escola, este o local onde foram mortos os primeiros soldados da Bolívia. Estamos, já, na Rua Coronel Brandão, ornada de uma ponta à outra por mangueiras imensas. Uma beleza.

O clube frequentado pela população mais aquinhoada fica quase em frente à Casa Branca. Trata-se do Bilhar Clube, de propriedade de Adão Galo, também o dono do grande empreendimento de nome A Limitada. Ao lado, fica o Cine Rialto. Mais adiante, localizo a bonita Associação Comercial de Xapuri e, em seguida, a Prefeitura Municipal; estes dois últimos são belos prédios em alvenaria. Há uma usina de laminação de borracha e, depois, a Praça Municipal, um local extremamente aprazível, com bancos, palanque, calçadas largas e, ao fundo, um bosque e uma fonte de águas muito límpidas. A partir de uma rua em frente à praça, passamos pelas obras de construção do colégio das freiras, de nome Divina Providência. Trata-se de algo bastante grandioso. Daí, seguimos para a Igreja de São Sebastião, um campanário de pouca altura ao lado do qual o pároco, Felipe Galeranni, está erguendo  -  e em fase de conclusão  -  uma matriz de uns quarenta metros de altura no estilo neoclássico romano. Vê-se da praça da igreja uma escola pública de tamanho bastante considerável e a Delegacia de Polícia.

De volta, passamos por uma rua, a Dr. Batista de Moraes, onde estão localizadas mais casas dos ricos donos da província. Ali também está localizada uma usina de beneficiamento de castanha que, segundo dizem, emprega a maior parte da população.

Completamos o périplo às seis da tarde, ao anoitecer, na região do porto, em frente ao jogo de gamão, onde alguns estivadores ainda embarcam borracha no navio Envira que seguirá para Manaus a partir do dia 21.

Manhãzinha do dia 17, seis e meia. Recosto-me a um banco em frente à pensão de Touffic Salim Abouache, o dono do snooker, cuja esposa, Senhora Venilha, prepara um café da manhã com muitos acepipes próprios da cozinha regional. Ela é paraense.

Apresentam-me um homem de olhos claros, tez entre branca a avermelhada, sisudo, de poucas falas, mas bastante educado, a segurar as rédeas de um cavalo de raça árabe e arreios prateados. Trata-se de Touffic Koury, um cidadão que triplicou a herança dos pais libaneses, como ele, criando gado numa grande fazenda que abrange quase a metade das cercanias da cidade.

Caminhamos, eu e o Tomás, ao lado do homem que segue a pé puxando o cavalo. À distância de um quilômetro, ainda quase dentro da cidade, ergue-se uma vivenda austera, bonita, com árvores frutíferas muito bem cuidadas, pintada em azul e amarelo. Da casa, avista-se o rio em sua formosura branda e constante.

A pedido de Touffic Koury, reviso os livros de contas do empreendimento. É um negócio altamente rentável, a partir dos dados obtidos através de alguns cálculos primários feitos por mim. Todo o campo é muito cuidado. Há duas mil cabeças de gado. Há, inclusive, uma pequena estação de banho preparada com remédios para o tratamento dos animais que se contagiam com carrapatos ou outras doenças específicas. Tudo está impecavelmente em ordem e eu lhe dou os parabéns sem mostrar que estou deveras surpreso com o que acabo de observar.

Não vejo porque receber uma moeda sequer como pagamento, mas ele insiste em me pagar. Faço-lhe, enfim, uma contra proposta:

- Beberemos algumas cervejas no Café Dino. O calor está grande e nós todos merecemos. Ao que o Tomás completou naquele sotaque interessante:

- É sábado. São nove e meia. O Dino nos fritará um bom pirarucu salgado, eu beberei um vinho do Porto que me aguarda na loja e juntos com alguns outros faremos um brinde às grandes oportunidades e aos bons negócios.
                                                                                                                     
Tudo, para mim, é, certamente, uma das maiores surpresas da vida. Os portugueses, Eurico e Tomás, tratam-me como se eu fosse um jornalista de Belém interessado pelas coisas da região. Tiramos trinta e oito retratos pelos quais farei régio pagamento. Morreria e não adivinharia que, naqueles rincões tão distantes, gente de bom gosto estava a erguer uma cidade pujante e feliz como aquela. Hoje, muitos deles, senão todos, certamente, já se foram. Alguns já contam mais de sessenta ou setenta. Todavia, nenhum sequer chegou a cogitar que um dia toda a experiência seria transformada num verdadeiro romance de aventura, próprio da tão decantada literatura de viagem que registrou, dentre outras, a ida dos cristãos ocidentais, rumo ao Santo Sepulcro, em Jerusalém, no tempo das Cruzadas, ainda na distante Idade Média.

José Cláudio Mota Porfiro escreve no blog Impressões Gerais.

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