Marcos Afonso Pontes
Andei a semana pensando numa criança.
E na mãe e no pai dela. E nos seus irmão.
Fiquei descaindo essa memória especialmente pelas tardes, o que me comoveu como um pequeno mimo ou um presente luminoso.
Às vezes olho a digital do meu polegar esquerdo. Sua espiral me faz lembrar a Via Láctea, assim como os traços comuns da palma da mão me levam ao M de Maria. São instantes bem assombrados de solidão e de um longuíssimo etc.
Já faz certo tempo, falei para a minha mulher que sou capaz de passar horas imaginando a origem das coisas, desde aquela leve nuvem azul de nêutrons aos fundamentalismos modernos de tão antigos. E também nos esforços que fazemos para falar humanês.
Detesto as crises que nos aprisionam em proporções fóbicas e em intoxicações mitológicas. Quando o Orkut era a febre, torcia para que alguém me convidasse a participar da rede. Quando aconteceu, tive que responder um questionário sobre o meu perfil. “Quais as duas coisas que você mais detesta?” era uma das perguntas. Passei dois dias pensando nisso e escrevi: a ignorância arrogante e o desprezo consciente pela cultura. Claro, uma resposta minimamente indócil e meio descaminhada, mas verdadeira para mim.
Quando me lembrei disso fiquei rindo, porque é uma toureação.
Daqui a pouco estarei chegando ao outono depois destas cinqüenta voltas ao redor do Sol. E eu gosto do outono e mais ainda do inverno.
Eu reflito sobre o meu trabalho, que é tão difícil e tão belo. Meus amores e dores semeados à margem da estrada. E revejo minhas viagens de tantas rodagens e aviações que somadas já me fariam rodear o Planeta. Muitas memórias estão em nuvens, outras solares.
Eu confesso: nestes dias eu pensei naquela criança, enquanto quarava meus devaneios à sombra de uma varanda de fogo, porque orbitamos desapiedosamente acima dos 40º nesta nossa cidade de Rio Branco, que amarela e esverdeia as águas do seu rio.
E quando pensava naquela eu criança, ia aos meus cinco anos de idade. Naquelas mesmas tardes, não tão quentes, minha mãe pastoreava meu banho. Vestia-me com um calção, blusa de botão e eu já sabia calçar os sapatos pretos de cadarço. Então, meu pai segurava minha mão e saíamos na rua de terra e capim em direção ao Mercado da beira do rio para comprar fígado fresco. Eu não gostava de fígado, mas adorava quando ele ficava conversando com os amigos e sua mão acariciava meus cabelos enquanto a tarde adormecia sobre as lanchas, batelões e gaiolas do porto.
Eu não entendia as conversas dos adultos. Havia outro diálogo entre a criança e o pai mais vigoroso naquele gesto.
Em que eu pensava nos meus cinco anos? Lembro que tinha os olhos sempre muito atentos e gostava de cruzar os braços. Talvez uma sinestesia de abertura para o mundo e uma sensação de receio. E tudo era fugaz e imagisticamente delicioso.
Hoje, agora, as pessoas me chamam de senhor. E de Professor. E de sonhador. Não imaginam o tanto que faço para ser, ao menos, senhor do meu tempo, professor de ideias e sonhador de primaveras.
Digo sempre que vim a este Planeta para dar aulas, palestras. Posso estar no meu limite, mas quando começo a falar, parece que uma entidade me abraça e os olhos chegam a brilhar.
Passei esta semana pensando naquele menino... E descobri que ele ainda mora dentro de mim e devo respeitá-lo e amá-lo. E vivê-lo sempre, como Drummond, procurando fazer canções para acordar os homens e adormecer as crianças.
Canção Amiga
(Carlos Drummond de Andrade)
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Marcos Afonso é professor e jornalista. Assina o blog Varal Ideias.
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