quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A vivenda dos nossos

Mais uma ótima crônica do Zé Cláudio

Contam que eu cheguei por ali, de corpo e alma, exatamente no primeiro dia desta vidinha antes tão pacata e hoje tão feliz, na graça de Deus. O anjo, minha mãe, sofreu muito para colocar no mundo ou dar-me à luz de um abril de 1957. Foram três dias de serviço extenuante do doutor José Koury, médico e parteiro. Enfim, o berro e a alegria dos dois irmãos que papai havia trazido no pacote do casamento de dois anos, já.

Não foi usado o bacamarte nem houve o pipoco da riúna para festejar com vinte tiros, porque Xapuri já era cidade há muitos anos. Houve, sim, o tradicional mijo. Antes, mamãe houvera feito licor de mutamba e jenipapo, aluá de milho, paçoca de castanha de caju e uns biscoitinhos de araruta e bolos muito gostosos elaborados a partir das artes e talentos da vizinha Nenem Veloso, quituteira de mão-cheia.

Consta que recebi a visita da metade do meu povo, inclusive, das celebridades, como o Dr. Gundim, juiz de direito, o Padre Eduardo, pároco da freguesia, o soldado Cipião, o cabo Boca de Jóia, da força policial, e mais um bocado de gente, no dizer de Maria, a avó materna. Com uma recepção dessas, era praticamente impossível não dar certo!

À época, minha mãe tinha uma amiga de todas as horas. (Era um tempo em que as moças passeavam na praça de braços dados por pura amizade.) Como não poderia deixar de ser, ela, a bela Eulália Brasileiro, foi madrinha e ainda hoje  -  dizem  -  tem muito orgulho disso desde o bairro de Maria da Graça, no Rio de Janeiro, onde reside desde os anos sessenta. 

O padrinho, como teria que ser, era o maior amigo do saudoso estivador lá de casa. (Juntos, rijos e fortes, eu e ele, um dia pegamos na alça do ataúde que levou o meu velho para a última morada). Sujeito alegre e bonachão, sempre estava a contar um causo mais atual. Feliz da vida e de bem com todos. Assim foi o Murilo Matos até o dia da partida em fins de 2010. Tinha-me grande admiração e é dele a expressão a mim dirigida:

- Que Deus te faça feliz!

Talvez por isso tenha dado tão certo. As palavras eram sempre alvissareiras e carregadas de bons fluídos. A avó Júlia dizia “Que Deus lhe dê boa sorte” e a avó Maria dizia “Que Deus te dê fortuna e felicidade”. Não é todo mundo que pode contar com augúrios tão positivos, é verdade.

Durante os dois primeiros anos de vida, balancei entre a vida e a vida porque uma doidivanas com quem meu pai tinha um xodó me colocou um quebranto de lascar... E todo mundo sabe: mal olhado de puta ou mata ou aleija o dizinfeliz... Certo é que sobrevivi, na boa.

A vivenda não era lá tão aconchegante, mas cabia todo mundo porque os corações eram enormes. Havia uma sala pequena - não miúda  -  com uma mesa média de canto, sempre lotada de livros e cadernos, e quatro cadeiras da marca jararaca fabricadas em Belém. Na parede, quadros dos ancestrais cearenses misturados aos retratos das crianças lá de casa, como um onde figuramos nós, eu e o Motinha, juntos, em um aniversário dele. Em verdade, a velha parede levantada em 1913 abrigava umas três ou mais gerações de fortes que se ergueram pelos próprios punhos e deixaram por aqui quem lhes contasse pelo menos pedaços das suas histórias de caudilhos.

E havia mais o quarto, onde nasci, e mais o outro quarto, menor, ocupado por minha avó Maria, quando esta não estava fazendo veraneio no seringal Albrácia. Os dois mais velhos dor-miam na sala, em redes. Eu dormia numa cama de campanha, no corredor, e os mais novos, repartidos entre os dois dormitórios. Havia uma sala de jantar (e de almoçar) com uma mesa imensa que cabia umas doze pessoas e onde degustávamos quase sempre iguarias feitas por minha mãe a partir de carne de caça. A cozinha contava com um fogão de ferro debaixo do qual sempre havia lenha partida, a machado, por nós mesmos. Aí também havia um jirau puxado pra fora. Debaixo deste, uma paredinha até o chão onde havia um pequeno buraco por onde o Motinha, o irmão sapeca, meteu a piroca para urinar e foi bicado por um galo que acabara de beliscar alguma coisa imprópria, talvez merda de um outro bicho qualquer. Resultado: um mês de curativos no hospital onde Irmã Rosa obrava milagres sobre milagres.

Era uma casa alta com um pé direito de uns dez metros; na realidade, um barracão comprido, de uns cinqüenta metros, construído de lado, mas paralelo à Rua 24 de Janeiro. Os imensos esteios, de cumaru de cheiro lavrado a machado, mediam cerca de dois palmos quadrados, que era mais ou menos a mesma medida das tábuas grossas de castanheira das paredes e do assoalho. O zinco veio de Belém e ficou intacto a desempenhar o seu papel até inícios dos anos 90. Obra do meu tio avô, Raimundo Calixto, a grande construção foi dividida em quatro casas que, depois, foram vendidas aos amigos cea-renses que por ali foram chegando, como Pedro do Vale Pereira, um empreendedor à moda antiga a quem Xapuri deve de tudo um pouco, inclusive, uma prole de filhos e netos honrados, trabalhadores e decentes.

Havia dois grandes camburões contíguos à cozinha lá de casa, sempre cheios até a tampa, mas não conhecíamos esse artefato belíssimo chamado torneira. A água vinha de uma distância de uns cem metros, carregada em cambão, na força bruta, pelos moleques lá de casa, a partir de um poço profundo e perigoso localizado num quintal vizinho. É claro que além de puxar na corda toda essa água, ainda havia a horta a ser aguada duas vezes ao dia. Uma barra!

De um lado da vivenda, havia uma vila lotada de pessoas bem mais pobres que nós. Ali, segundo consta, tristes damas de vida difícil fa-ziam sexo rude e popular a preço abaixo da média de mercado. Era a lei da sobrevivência para os que vinham do seringal para a cidade buscando fazer o que não sabiam, isto, em termos de afazeres mais dignos. (Ora, o seringueiro não sabe muito além de cortar seringa e os rudimentos da agricultura. O que saberia ele fazer numa cidade? Daí a miséria, a criminalidade, a prostituição, dentre outros males sociais).

Na casa do lado direito, moraram bons amigos, como a Tia Naninha, a Nenem Veloso, o Zé Figueiredo, o Euclides Brasileiro e o Sargento Severino. Ocorre, todavia, que a residência ficava por longos períodos sem morador. Aí é que começava a arruaça dos espíritos. Minha avó Maria dizia um dia ter visto um olho bem grande abuticado para dentro da nossa casa a partir de um buraco causado pelo nó da madeira velha que se desprendera. Eu, de minha parte, sempre ouvi muito barulho. Um dia, então, estávamos em conversa à tardinha na calçada da frente da vivenda. Mais ou menos às seis da tarde, juntos, começamos a ouvir o barulho de dois ou três tijolos que eram atirados e saíam rolando pelo assoalho de madeira afora como se a casa não dispusesse de paredes que formavam os compartimentos. Pior é que, além das pedras, muita panela também caía na cozinha. Um dia, o estivador, então, chegado do serviço, pegou as chaves que ficavam sob sua responsabilidade e foi pela casa adentro, e eu mais vovó e mamãe fomos atrás. Vasculhamos tudo e não encontramos pedras ou panelas, posto que ali elas não existiam na realidade. Mesmo assim, ele continuou afirmando que alma é coisa de mulher e de cabra frouxo.

- Eu só quero é que um dia uma alma me venha aperrear o sono. Eu vou é meter a bala! – Isto tudo com a finalidade de encher-nos de coragem para o enfrentamento da vida.

Sob aquele teto de zinco enegrecido pela fuligem dos anos, pelo menos durante os dezenove verões em que por lá estive, viveram, além de papai e mamãe, a avó Maria, no inverno, e mais a Maria e a Regina, irmãs postiças, o Manoel, o Marcos, eu, o Mota, o Jorge e a Socorro, além das afilhadas de papai que vinham do seringal para a cidade com o intuito de estudar, como a Péta, a Mariquinha e a Neurides, esta, hoje formada em Letras pela Ufac.

A faina diária era iniciada antes do sol nascer e ia até as nove da noite pois, a partir daí, a Rádio Difusura começava a chiar demais e era hora do sono dos justos. Às quatro da manhã, já estudávamos à luz de um Aladim (lâmpada à querosene) comprado por papai para tal fim, uma vez que a luz elétrica ia apenas das seis da tarde às dez da noite, ou menos. Ali entendi as bases da matemática entre razões, proporções, expressões aritméticas, raízes quadradas, regras de três simples e composta, seno, co-seno, tangente, co-tangente e mais o raio que o parta.

Depois, pensávamos na sobrevivência da família...

De uma lata de banha, daquelas antigas, de dois quilos, improvisávamos uma vasilha para o preparo do café matinal. Era só fazer fluírem os pendores para a marcenaria e colocar um cabo de madeira. Mais difícil, entretanto, não era ligar o botão do fogão a gás que não tínhamos e que sequer existia. Uma rotina invariável, era, certamente, às cinco da manhã, cortar o sernambi, cavacos finos de madeira seca, tocar fogo e ir colocando carvão, pedrinha por pedrinha, até chegar a vez das grandes, no fogareiro fabricado a partir do cimento e de uma lata de querosene cortada ao meio. Dez minutos apenas. E mais dez, enquanto era adi-cionado o pó e o açúcar. Depois, enfim, vinha a parte final e mais perigosa da operação: coar o café quente desde um saco de bico equilibrando-o rumo à boca estreita do bule verde de esmalte que veio do Ceará e durou uns cinquenta anos, não sem algum exagero. Melhor da história é que o meu café era tido e havido como muito bom, mesmo tendo eu jamais experimentado a tal beberagem até os dias que correm.

E pernas para que te quero... Era hora de buscar o pão... Corria à padaria do Senhor Jorge Farofa  -  marido de D. Elisa e pai de Abdon, Emílio, Jorgete e Consuelo Eluan  -  que funcionava a partir das cinco, depois que o Estivador, meu pai, abria o estabelecimento e vendia os primeiros pães diários, isto, até as sete da manhã quando, invariavelmente, ele ia à casa onde todos já haviam tomado o café da manhã e estavam entretidos com alguns afazeres maiores ou menores, inclusive as crianças que, como eu, já estavam na escola.

Datas deveras especiais eram os aniversá-rios, quando em casa mesmo mamãe fabricava os pastéis mais gostosos que eu já experimentei, além de quibes de macaxeira e de arroz, bolos, brevidades, biscoitinhos de araruta, filhós em calda, caramelos de cupuaçu, aluá de milho, licor de jenipapo para os adultos, refrescos de maracujá, abacaxi, caju... É claro que jamais esquecerei, ainda nos anos sessenta, a presença diferenciada de um homem brancão, gordão, amigão, vindo da Itália. Era o Padre João Maria Palmieri, o glutão, que, depois de encher a pança, entupia os dois miraculosos bolsos da batina que cabiam uns dois quilos de comida.

Em frente à residência simples, minha mãe plantou um jardim repleto de zínias, papoulas, tajás, roseiras, dentre outras. E, de martelo e serrote em punho, construiu um banco para a conversa noturna à beira da calçada. Atrás da residência, havia muitas árvores, todas frutíferas, e um pouco mais adiante, ela, o anjo de candura, plantou uma horta de onde retirávamos o que emprestava algum valor à nossa mesa: couves, alfaces, cheiro verde, tomates, e muito mais.
É esta apenas uma pequena parte da história da prole do hercúleo Gibiri, o estivador xapu-riense que, pelo fato de ter feito um filho cronista, não caiu no esquecimento do seu povo, como outros tantos que bem poderiam ter as vidas tão construtivas retratadas em páginas como esta. Que Deus os tenha na sua eterna glória! Amém!

José Cláudio Mota Porfiro é escritor xapuriense e irmão do Manoel Gibiri.

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