terça-feira, 29 de novembro de 2011

A Represa

Personagens acreanos no romance de Océlio de Medeiros

A_REPRESA

Sérgio Roberto Gomes de Souza

Não faz mais de uma semana que tive acesso a um romance de nome A Represa, escrito por Océlio de Medeiros na década de 1930 e publicado no ano de 1942 pela editora Irmãos Pongetti, do Rio de Janeiro.

Tive o prazer de conhecer pessoalmente o Océlio Medeiros. Foi no ano de 2002 quando ele, gentilmente, aceitou convite para realizar uma palestra no curso de História da Universidade Federal do Acre. Na ocasião, falou sobre tratados e limites, em uma referência ao processo de anexação do Acre ao Território brasileiro.

Mas voltemos ao romance do Océlio. Já no prefácio, uma explicação: “a sua técnica, através de um estilo propositadamente descritivo, consistiu muito em buscar personagens de ficção ou mesmo inspirado em modelos reais, para cenas que colheu numa apreensão caricatural, como matéria-prima de romance, no sofrimento da vida amazônica.” Entendido? A obra com a qual vou dialogar é uma ficção. Mas não esperem, no entanto, personagens desconectados dos sujeitos sociais e dos eventos que compunham parte do cenário acreano na década de 1930.

Quando iniciamos a leitura do romance A Represa, é quase impossível não perceber de que e de quem se trata. Océlio constitui caricaturas de personagens da vida pública acreana, explicitando informações que, certamente, estavam escondidas a sete chaves. Veremos algumas.

O primeiro de quem falaremos será João Donato – esse mesmo que deu nome ao helicóptero - capitão da polícia do Acre e que foi assim descrito: “Donato era um antigo caften (cafetão, gigolô) filho de um herói do Acre, e contrabandista de cocaína na Bolívia. Era baixote, gordo e peitudo. Ao falir na profissão de seringueiro, assentou praça na polícia, fazendo carreira desde capanga no Juruá, até capitão, em Rio Branco. Temperamento vingativo, alma que era um repositório de maldades.” [1]

[1] MEDEIROS, Océlio. A Represa. Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, 1942. P. 116

Já o Dr. Mário, personagem que parece representar o Dr. Mário de Oliveira, era apresentado como o “gentil poeta” devido a seus “trejeitos suaves” e “sonetos com imagens doces e fechos de ouro.”[2] Segundo Océlio: “o Dr. Mário (...) colecionador de orquídeas, substituiu o nome de uma das mais raras espécies da Amazônia, a gogó de guariba por epífita esôfago de guariba. (...) e se tinha de dizer a construção: a garça é uma ave que come peixe, reduzia tudo a: “a garça é um pernalta piscívora.” [3] Tanta demonstração de erudição devia-se ao fato de que o Dr. Mário era fervoroso defensor da linguagem escorreita (sem defeito).

[2] Idem. p. 131

[3] Idem. pp. 147 a 148.

Já o Dr. Anselmo, adepto do estrangeirismo, se pronunciasse alguma palavra estrangeira, fazia visando a pronuncia real. Assim, diz Océlio: “o Dr. Anselmo, nos seus exageros, não pedia ao taberneiro sabonete reuter, era sabonete roiter; não dizia Mississipi, era Massassaipe; (...) e só faltando vomitar, depois de torcer a boca como se tivesse um acesso de congestão, não falava máquina de escrever underwood, era an–der–uuu– oóód.”[4]

[4] Idem, p. 147

E olha que ainda nem se falou do Amadeu Aguiar, Jornalista do periódico O Acre, jornal dado a bajular “autoridades”. Amadeu Aguiar era famoso por colocar adjetivos em personalidades: “o prefeito era dinâmico, o maçom Marcos o venerado, o desembargador o egrégio, o professor Cazuza era o provecto, o Dr. Fabrício era o ilustre causídico, o Anselmo era o emérito” e por ai vai.

No afã de demonstrar sua importância, certa vez, ao ser apresentado ao coronel Belarmino não hesitou em afirmar: “O Acre é o maior órgão de circulação em todo o Brasil.”[5]

[5] Idem, p. 116

Mas a melhor definição do Amadeu nos foi presenteada pela Noêmia, a quem Océlio define como “quenga do Beco”, provavelmente em uma referência a um espaço situado no Distrito de Empresa, próximo ao Hotel Madrid. Segundo Noêmia: “o Amadeu era desses que, para pagar o tributo à natureza, desabotoava a braguilha com papel de seda nos dedos.”[6]

[6] Idem. Ibdem

Como representante do clero tinha o Padre José. O religioso não dispensava solenidade e possibilidade de estar perto do poder. Fanfarrão, gostava de contar sobre caçadas e aventuras vividas na floresta. Segundo Océlio: “O Padre José (...) contava as estatísticas dos bichos caçados: duzentos caititus, trezentas pacas, quatrocentos veados, cinquenta onças, oitocentos mutuns, dois mil jacarés... Anos depois, o Padre José foi nomeado agente recenseador.”[7]

[7] Idem. p. 128

Xapuri também tinha seus personagens. Em conversa com D. Candinha, Major Isidoro relata que, ao passar pela Rua Coronel Brandão, rememorava o assassinato de Braga Sobrinho e o ato cometido pelo Dr. Jaime que, em um ato de fúria, enforcou um carneiro com as próprias mãos, em uma alusão ao governador do Acre entre 1927 e 1930, o advogado Hugo Carneiro, de quem era desafeto.

Major Isidoro também não cansava de se lamuriar sobre a situação do Território e, especificamente, de Xapuri, que conviviam com abruptas quedas no preço da borracha. Saudoso, relembrava o período em que o Acre monopolizava o comércio da hevea e não tinha a concorrência do sudeste asiático: “Nesse tempo, o Acre era Acre! Xapuri tinha de tudo! E hoje é a terra do já teve... infelizmente é isso mesmo! Xapuri já teve muito dinheiro (...) já teve navios... e agora ninguém tem mais nada!”[8]

[8] Idem. P. 14

Como podemos ver as coisas não mudaram lá grande coisa.

Sérgio Roberto Gomes de Souza é Professor da UFAC.

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