Élson Martins
Na chegada do ano 2008 teve muita festa para dona Cecília Mendes, madrinha símbolo das boas coisas que acontecem no seringal Cachoeira, nas proximidades de Xapuri. Ela recebeu o prêmio que leva o nome do sobrinho querido, Chico Mendes (assassinado em dezembro de 1988), e dia 1º de janeiro completou 82 anos, alegre, esperançosa, cheia de vida.
Não, não, a vida dela nunca foi fácil. Aos 11 anos de idade, trocou a cidade pela floresta e casou muito jovem. Teve 19 filhos, todos com parteira, criados no peito e sem conhecer médico.
Viúva há 13 anos, a imagem que faz do marido, Joaquim Mendes, irmão do pai do Chico, é a imagem dela mesma: só o pai deles pra trabalhar e criar todos eles! Naquele tempo o pobre morria de trabalhar e não pagava a conta, não sei por quê. O que aquele homem trabalhava! Cortava seringa o ano todinho. Quando terminava a seringa começava a quebrar castanha, e quando terminava tudinho ainda estava devendo um monte. Não tinha castanha, não tinha borracha, não tinha nada que pagasse a conta.
A casa em que vive no seringal, hoje, é mais movimentada que a sede da associação local dos extrativistas. É um entra-e-sai o tempo todo, de parentes, amigos ou visitantes que vão pedir conselho, entrevistá-la, tomar a bênção ou, simplesmente, tomar café com farofa de ovo e, se tiver sorte, saborear um guisado de paca com farinha. A sala é o cômodo menor e menos importante: mal cabe um sofá e uma TV no canto, além dos quadros da família pendurados na parede. É ligada à cozinha por um corredor estreito, com janelas à esquerda, e portas de entrada para dois ou três quartos à direita.
A cozinha, claro, é ampla, com jirau e porta que dão para o quintal. É o reinado de dona Cecília. Tem uma mesa grande no centro com bancos corridos laterais e tamboretes nas cabeceiras. Sobre ela permanecem pratos, xícaras, copos, garrafa de café, farinheira...o tempo todo. Resumindo: a cozinha é um centro de cultura onde se ouve e aprende os segredos da floresta.
Cidade... só pra batizar menino!
Cidade... só pra batizar menino!
A senhora acha que o seringal está melhor agora ou antes?
Agora. Na verdade, nunca foi ruim. O que era ruim no seringal era o patrão. Antigamente, aqui era bom porque não tinha essas derrubadas, essa acabação de mata, a destruição doida que tá uma coisa triste. Todo dia eu penso nessa destruição da mata, secando água, se acabando tudo. Antigamente era uma beleza. As águas boas, as águas bonitas, um “sombrio” beleza. Tudo era bom. Muito calmo. Ainda ontem eu tava conversando com as meninas aqui, lembrando como antigamente era tão animado... O pessoal brincava a noite inteira. Botava uns três paus assim, um saco de carregar borracha, a cachaça vinha naquele frasqueirão; aí era um caneco dentro e o pessoal cantando e dançando, e de vez em quando o caneco no saco de cachaça, que nem água. Hoje vai fazer isso que morre gente...
E não morria ninguém antes?
Não. Nem brigavam.
Era fácil casar e separar no seringal?
Não era fácil não. Separar assim uma vez... só por um descuido... Pelo menos do meu alcance não existia essa danação!
A gente ouve muita história do que acontece na mata. Fala-se que a pessoa atira num animal e ele fica olhando, parado. Acredita nessas coisas?
Isso daí é verdade. Da mata o senhor não duvide de nada, porque na mata tudo tem.
Já passou por alguma situação dessas?
Não senhor, graças a Deus.
Mas tem medo da mata?
Todo mundo tem medo, né, seu Elson? Porque é na mata que moram os bichos. Eu tinha medo, sim, de andar na mata, e nem ando ainda!
O que a senhora teme?
Tenho mais medo da cobra. Mais do que da onça.
Viu alguma onça?
Morta, já, mas viva, não.
Com 19 filhos, sobrou tempo pra senhora trabalhar na roça, ou algo assim?
Coitada! Se eu fosse lhe contar minha vida era pior que a vida do Chico Mendes. Eu pra criar esses filhos sofri muito. Ainda ontem eu conversava com um deles dizendo: “Ah, meu filho, as coisas hoje em dia estão muito boas”. Sofrer, sofri eu. Que eu não vou contar riqueza porque eu não era rica.
Como era o seu dia-a-dia na floresta, no começo?
Minha luta de casa era lavar roupa pra fora, costurar pra fora, cuidar de um bando de menino, cuidar do tabacal, arrancar feijão, apanhar arroz. Tudo isso eu fazia.
E cozinhava também...
Cozinhava. Empregada da onde, né (risos). Se a gente não podia nem com a gente, ainda mais pagar empregada. Agora vim ter ajuda das minhas filhas quando elas ficaram grandinhas.
E cozinhava também...
Cozinhava. Empregada da onde, né (risos). Se a gente não podia nem com a gente, ainda mais pagar empregada. Agora vim ter ajuda das minhas filhas quando elas ficaram grandinhas.
Quantas mulheres e homens a senhora teve?
Eu tive 10 mulheres e 9 homens. Uma mulher nasceu de sete meses, nasceu morta. Hoje tem 14 vivos.
É muita sorte a senhora ter 14 ainda vivos...
O senhor sabe que eu agradeço muito a Deus por ter sido uma mãe feliz. E digo por consciência: por causa dos meus filhos. Porque sempre acontece alguma coisa com um ou com outro, mas, Graças a Deus, nunca aconteceu nada muito grave.
A senhora ainda teme que a devastação da floresta ameace vocês?
Eu não acho difícil. Mas até agora ainda não soube. Mas tenho medo. Tenho um filho que é soldado lá em Rio Branco, e outro que trabalha lá. Com esses eu me preocupo e tenho medo, porque é na cidade que acontecem as coisas. O restante vive aqui em paz.
E agora já têm escola e saúde aqui?
Já. O Chico quando morreu já deixou escola aqui. Saúde tá meio lá, meio cá. Volta e meia falta um remédio.
A senhora cuidou da saúde de seus 19 filhos com que remédios?
Remédios da mata. Com chá, lambedor, eu sei que tratava dos filhos assim.
Teve algum contato com índios?
Não. Aprendi com minha mãe. Ela que sabia vários remédios do mato, medicina da mata.
Quantos netos a senhora têm?
Ah, meu filho, aí nós não podemos nem conversar. Passo o dia todinho e não acabo de contar [risos]. Já tenho três tataranetos.
Quando a senhora fala que o seringal antes era melhor, está se referindo a quê? Segurança?
Antigamente era melhor nos seringais porque era tudo à vontade. Não tinha quem mexesse nas matas. Quando a gente mexia era pra fazer um “ roçadozinho” pra plantar um milho, um arroz. Era muito bom de caça. Cidade era aquilo em que ninguém falava, a não ser pra batizar menino. Era uma vida bem tranqüila.
E televisão, rádio e luz, a senhora não gosta?
Eu gosto de luz. Televisão é coisa que não faço questão. Mas rádio eu gosto, porque fico sabendo as notícias, e se tiver uma família minha passando mal eu já sei aqui.
Entrevista feita em julho de 2005 com a participação de Júlia Feitoza e Marcos Dias, publicada pela Agência de Notícias Kaxiana.
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