quinta-feira, 21 de junho de 2012

“Matutações” de virada de ciclo

Eurilinda Figueiredo

Nasci em Xapuri, nos anos sessenta, e lá vivi minha infância e adolescência, numa época em que a TV ainda não nos roubava das conversas nas calçadas, dos banhos de rio, nem das brincadeiras nas ruas e quintais; em que o asfalto ainda não nos tinha privado do frescor das matas fazendo sombra na estrada de terra (ora empoeirada, ora lamacenta), nem das ruas sombreadas de árvores, vivas de bichos preguiça, macacos, araras, borboletas e tantos outros animais - vizinhos da floresta ainda tão presente...

Mulher, mãe, branca, negra, indígena, educadora, estudante, gestora, leitora “viageira” de lugares tantos e diversos, guardo em mim identidades em construção e permanente movimento, que me vestem de modos de ser, fazer e viver tão distintos e iguais – presentes e pulsantes nas histórias vividas e sentidas.

Assim, sou a menina branca que estudou em colégio de freiras, fez primeira comunhão e frequentou missa aos domingos. Sou a ekedi, mãe, no Terreiro de Candomblé, com a função de zelar, acompanhar, dançar, cuidar. Sou ayahuasqueira, aprendiz da força e luz dos espíritos das matas, das águas, do céu e da terra.

Ainda criança, descobri que sou indígena, neta da Vó Maria, de quem não conheci primeiro nome, nem língua outra que não o português falado pouco e baixo, porque o casamento com o avô branco e a cidade já tinham calado as memórias e o rastro dos antepassados – menos na paca, no macaco e no tatu postos à mesa, menos nas rezas sussurradas e perfumadas de ervas úmidas, sacudidas como maracás, a expulsar os males, a chamar a cura...

Tento aprender a amar e respeitar as terras, as águas, as florestas e também os outros e outras - mulheres e homens - que cá estão, comigo neste mundo - com suas emoções, suas histórias, suas buscas e convicções. Sendo tantas e continuadora de tantas histórias, tendo aprender, com os de antes e os de agora, a responsabilidade e o comprometimento de carregar suas memórias, suas angústias, suas contradições, sua humanidade.

Eurilinda é filha do casal Júlio e Raimunda Euri Figueiredo. Postou o belíssimo texto no Facebook por ocasião de seu aniversário. Pesquei-o para cá por sugestão da Viviane Pereira, leitora frequente deste blog, que pertence a todos os xapurienses, com suas “matutações”, pensamentos e ideias.

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