Marina Silva
Há exatos 23 anos Chico Mendes foi assassinado. A tristeza cobriu a floresta e o povo dali chorou. Um choro inaudível para muitos no Brasil, mas alto e claro a milhares de quilômetros dali. A notícia de sua morte foi estampada nas páginas de importantes jornais do mundo. E só assim que os encarregados de informar se informaram e os de proteger, denunciados.
Mas o sangue vertido escrevia, definitivamente, os contornos da Amazônia no coração e na mente de milhões de brasileiros e de cidadãos do mundo. A batalha invisível contra o abandono e o extermínio era agora conhecido nas cidades e além das fronteiras. A solidão do povo da floresta começava a se romper, suscitando indignação e sonhos que foram capazes de alistar jovens de todas as idades.
Era a solidariedade, uma das mais nobres virtudes humanas, se manifestando no momento da dor. Desse encontro entre necessidade e solidariedade surgiu a esperança. Uma esperança visível, que se expressa na forma de uma ciência comprometida, de políticas públicas, de projetos de educação, saúde, organização e de desenvolvimento comunitário. Novas leis foram surgindo e a luta de Chico Mendes, no Acre e no Brasil, se ampliou e se fortaleceu, saindo da marginalidade para o centro do Estado de Direito.
O nome do Chico está em muitos lugares. Prêmios, praças, escolas, em instituições federais e até inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, ao lado de Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Santos Dumont. O feito que o tornou um símbolo, e que confere sentido e valores ao que carrega seu nome, foi tão somente sua luta em defesa da Amazônia, suas matas, seus bichos e sua gente.
Desde então, o dia 22 de dezembro tem sido dedicado à sua memória e à sua causa. Gestos são feitos para demonstrar gratidão com a luta que ele empreendeu. Discursos, inaugurações, anúncios e prêmios são entregues àqueles que cooperaram para o mesmo propósito.
Infelizmente este ano é diferente. É o primeiro desde 1988 em que a memória de Chico Mendes e seus ideais correm o risco de não serem honrados. É o ano em que o Código Florestal, a lei que ampara e protege as florestas do país, agoniza sobre as mesas do Congresso Nacional e na antessala do Palácio do Planalto. É triste ver que o Parlamento que o elevou à categoria de herói nacional, agora desmonte a lei com a qual ele pode tão bravamente e pacificamente lutar.
Neste 22 de dezembro, todos os discursos em memória de Chico Mendes deveriam ser convertidos em defesa da causa a que ele se entregou. Todos os homenageados deveriam cobrar posições coerentes das instituições que, como é o caso do Ministério do Meio Ambiente, usam seu nome para fazer honrarias.
Mas existe uma mulher que, juntamente com o apoio da sociedade brasileira, ainda pode fazer a maior homenagem que a memória de Chico Mendes merece e suscita neste ano de 2011: Dilma Rousseff. Está nas mãos dela transformar o ruído em voz, o boato em fato, a gesticulação em ato. E com o veto, honrar o compromisso assumido com o povo brasileiro de que não permitiria anistia àqueles que desmataram ilegalmente, assim como não aceitaria o aumento do desmatamento.
Quando do assassinato de Wilson Pinheiro, Chico disse ao hoje ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, circunstâncias que definitivamente selaram sua trajetória de vida com a de seu companheiro de solidariedade, em momentos dramáticos como aquele: "Chegou a hora da onça beber água".
Se vivo ainda fosse, Chico bradaria, para todos nós, de forma suave como era de seu feitio e firme como era de sua têmpera, seu histórico e atualíssimo bordão, nos convocando a mais um de seus empates: "chegou a hora da onça beber água". E certamente completaria: "quem não lambe folha que se apresente onde o grande igarapé faz a volta."
E a volta se chama veto, é só ninguém ficar de braços cruzados diante do redemoinho.
Marina Silva é professora de ensino médio. Foi senadora pelo Acre (1995-2011) e Ministra do Meio Ambiente (2003-2008).
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