João Baptista Herkenhoff
Dentre as milhares de decisões que proferi na carreira de juiz, há uma que me traz uma lembrança especial.
A protagonista do caso chamava-se Edna.
Hoje, aos 76 anos, sou capaz de me lembrar do rosto de Edna e do ambiente do fórum, naquela tarde de nove de agosto de 1978. Uma mulher grávida e anônima entrou no fórum sob escolta policial. Essa mesma mulher saiu do fórum, não mais anônima porém Edna, não mais sob escolta porém livre.
Após ouvir, palavra por palavra, a decisão que a colocou em liberdade, Edna disse que se seu filho fosse homem ele iria se chamar João Batista. Mas nasceu uma menina, a quem ela deu o nome de Elke, em homenagem a Elke Maravilha.
Edna declarou no dia da sua liberdade: poderia passar fome, porém prostituta nunca mais seria.
Edna era humilde e pobre. Sua maior riqueza era aquela criança que pulsava no seu ventre. Ela não me oferecia assim alguma coisa externa a ela, mas algo que era a expressão maior do seu ser. Se a promessa não se concretizou isto não tem relevância, pois sua intenção foi declarada. Se eu encontrasse Edna teria de agradecer o que ela fez por mim. Edna me ensinou que mais do que os códigos valem as pessoas.
Segue-se a decisão extraída do Processo número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha (ES):
A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado, palestrante pelo Brasil afora e escritor. Acaba de publicar Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves (GZ Editora, Rio).
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