domingo, 28 de abril de 2013

Arrivistas em conflito

Escaramuças entre oligarquias locais e prefeitos departamentais

Sérgio Roberto Gomes de Souza

Após a assinatura do tratado de Petrópolis, ocorrida no dia 17 de novembro de 1903, deu-se o início da organização política e administrativa do Acre. Por decisão do governo federal o novo Território passou a ser administrado pela união, contrariando profundamente as oligarquias locais que ansiavam pelo exercício do poder no espaço que, outrora, pertencera aos “patrícios” bolivianos. O decreto federal nº 5.188, de 07 de abril de 1904, dividiu administrativamente o Território em três Departamentos: Alto Juruá, Alto Purus e Alto Acre[1], sendo posteriormente nomeados seus respectivos prefeitos e membros do corpo judiciário.

A decisão feriu de morte as oligarquias locais, principalmente os que contribuíram para o sucesso dos levantes contra os bolivianos, que tinham convicção de usufruírem das benesses do poder como recompensa por seus, digamos, “arroubos patrióticos”. Mas não foi o que sucedeu, tendo comerciantes e seringalistas que contentarem-se em explorar seringueiros ou obter lucros através dos exorbitantes valores que as mercadorias eram comercializadas na região. Tamanho descontentamento terminou por propiciar o surgimento de movimentos que contestavam a ausência de autonomia administrativa e financeira do novo Território, bem como a nomeação dos prefeitos departamentais, no geral, apadrinhados de importantes políticos da República nascente, pessoas com pouca ou nenhuma relação com o Território, sendo que, muitos, conheciam pela primeira vez a região no momento em que desembarcavam para ocupar o cargo, o que teria servido como pretexto para que os locais apelidassem os “agraciados” como: “aves de arribação”. É possível perceber tal indignação, por exemplo, através de um documento intitulado “Manifesto Autonomista”, datado de 1º de junho de 1910, observemos: É conhecida do país inteiro a situação humilhante e excepcional que o poder Legislativo entendeu de criar para os brasileiros que habitam o Acre (banidos da constituição; relegados ao tempo da treda justiça d’El-Rei; considerados incapazes de intervirem nos negócios nacionais; exilados dentro da pátria; carecidos de tudo os acreanos (...) vêem o produto do imposto que pagam – o mais exorbitante do mundo inteiro – aplicar-se em serviços que não lhes aproveitam, em melhoramentos que não lhes beneficiam, em prazeres que não gozam, em suntuosidade, que nem sequer imaginam (...). Se todos os brasileiros são iguais perante as leis não deve haver exceções para os 120.000 homens que habitam as terras acreanas (...) (COSTA, P. 170 apud Silva, 2012, p. 58).

Mas não teve jeito, pelo menos até o projeto de lei nº 2.654-C/57, de autoria de José Guiomard dos Santos, “ter sido aprovado e sancionado em 15 de junho de 1962 por força do Decreto nº 4.070/62”, emancipando politicamente o Acre (SILVA, 2012), os oligarcas locais tiveram que conviver, aturar e, na maioria das vezes, bajular “autoridades” vindas de outros estados da Federação. As primeiras nomeações coincidiram com o período de conformação da República recém proclamada. Tempos difíceis e propícios para o desenvolvimento do que N. Sevcenko denominou como “arrivismo”, ou seja, a busca desenfreada e sem limites éticos pelo enriquecimento. Apurou-se no período o surgimento de indivíduos “predispostos a fome de ouro, à sede da riqueza, à sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo”. (SEVCENKO, 1996, p. 36). Os prefeitos nomeados para o Acre parecem não fugir a regra. Pelos menos é a impressão que fica quando observa-se com maior atenção as denuncias que faziam os que assumiam o cargo, em substituição aos que iam embora do território, muitas vezes em meio a perturbadoras comemorações por estarem deixando este “insalubérrimo” local. Atente, prezado leitor, para as críticas feitas por Plácido de Castro contra o ex-prefeito do Departamento do Alto Acre, Acauã Ribeiro.

José Plácido de Castro, principal líder dos levantes contra os bolivianos, exerceu a função de prefeito do Departamento do Alto Acre entre os anos 1906 e 1907. No relatório que enviou ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores referente ao primeiro ano de sua administração, foi ferino e direto nas críticas contra seu antecessor. Na opinião de Plácido de Castro, boa parte dos recursos enviados pelo governo federal haviam sido gastos por Acauã Ribeiro sem controle ou critério algum. Plácido começou por criticar duramente o ex-prefeito Acauã Ribeiro pela escolha do local onde seria instalada a sede da prefeitura do Departamento na cidade de Rio Branco. Para exemplificar, abordou a decisão do ex-prefeito de formar uma comissão com o intuito de escolher o melhor local para a instalação da sede da Prefeitura do Departamento do Alto Acre. A tal comissão foi composta pelo engenheiro Jayme Coimbra; o médico J. E. Freire de Carvalho e o também médico e juiz de Distrito à época, Salvador Rizzo e teve seu trabalho assim definido por Plácido de castro: “Esta comissão depois de acurado exame e na impossibilidade de encontrar talvez, outro local mais impróprio e mais insalubre (grifo nosso), apresentou o seu luminoso (sic) parecer escolhendo a malsinada Volta da Empresa para estabelecimento definitivo da sede da Prefeitura do Alto Acre. O Dr. Acauã resolveu pela opinião dos comissionados, e logo após a construção da nova cidade, fizeram o levantamento topográfico do lugar, locaram-no, mas no papel, confeccionaram plantas e abriram uma picada de 30 metros de largura, a que deram o nome de Avenida Sete de Setembro, despendendo a prefeitura com estes trabalhos, nada menos de 70 contos de réis” (CASTRO, 1907, p. 187).

Os questionamentos à administração de Acauã continuaram. O próximo alvo das contestações foram os levantamentos topográficos que o prefeito mandara o engenheiro Gastão Lobão realizar, serviço caracterizado como inútil e dispendioso por Plácido de Castro, que afirmou: “(...) o levantamento topográfico de um caminho ligando o Acre ao Iaco, aberto pelos habitantes desta região e completado pelo Governo Acreano (sic), despendendo a Prefeitura com este trabalho inútil, cerca de 30 contos de réis” (CASTRO, 1907, p. 189). Ressalte-se que, anteriormente, Acauã já havia autorizado outro serviço de topografia, desta vez, entre Xapuri e o povoado de Costa Rica, na Bolívia, ao preço de 40 contos de réis.

Finda as críticas à administração de Acauã Ribeiro, a nova “vítima” foi o ex-prefeito Pinto Monteiro, cujo maior “pecado” foi a contratação de um “plano de aviação” que, segundo Plácido de Castro: “a despeito da contratação com seus construtores, não conhecemos” (CASTRO, 1907, p. 187). Coube aos engenheiros Jayme Coimbra e Alberto Armando Ricci a incumbência de execução do citado “plano”, que referia-se a abertura de uma picada, visando abertura futura de um varadouro, entre as vilas de Porto Acre e Xapuri. O serviço fora acertado ao valor de 700 réis por metro. Um contrato posterior com os mesmos engenheiros foi firmado para o início da abertura do “tal” varadouro, sendo este “no valor de 22$000 por metro corrente e 97$700 por metro de ponte de madeira sobre igarapés, por ventura cortados pelo mesmo varadouro” (CASTRO, 1907, p. 191). Os valores foram considerados exorbitantes por Plácido de Castro. Pelos seus cálculos, a prefeitura teria como dispêndio com esta ação um valor de aproximadamente 2.200 contos de réis (CASTRO, 1907, p. 191).

É possível que as queixas de Plácido de Castro refletissem seu descontentamento com o governo federal que, além de lhe retirar do poder quando do término dos embates com os bolivianos e a assinatura do Tratado de Petrópolis, lhe excluiu das primeiras nomeações para o cargo de prefeito departamental. Some-se a isto, o fato de prefeitos que lhes antecederam terem sido mordazes em suas críticas contra o líder da “ex-Junta Revolucionária do Acre” caso, por exemplo, de Rafael da Cunha Mattos que, em seu relatório de 1905, ao tratar sobre a guarda dos “documentos da revolução”, afirmou: “Mais que um indício veemente me fazem crer que Plácido de Castro, tendo em seu poder o arquivo que guardava os mais importantes documentos sobre propriedade e outros interesses alheios, abriu criminosamente a mala em que se achavam encerados esses documentos e os possui, não podendo eu atinar qual o fim que tem em vista o violador. Seja como for, porém, mais tarde ou mais cedo e as máscaras serão desafiveladas dos rostos de mais de meia dúzia de especuladores” (MATTOSS, 1905, P. 18).

As animosidades contra os prefeitos nomeados foi uma constante no Território do Acre nas duas primeiras décadas do século XX. Francisco Bento da Silva ressalta que data do ano de 1904 o surgimento do Movimento Autonomista do Alto Juruá, mas que a primeira medida coletiva e organizada ocorreu somente a partir do ano de 1910 “quando vários comerciantes de Sena Madureira enviaram uma carta, datada em 11 de abril, tratando da questão autonomista ao presidente Nilo Peçanha” (SILVA, 2012, p. 56). Assinaram o documento “78 personalidades, os auto intitulados ‘homens bons’ daquela localidade (...). Se consideravam ‘homens bem’ proprietários, portanto, no entendimento deles, detentores de direitos que lhes eram negados enquanto cidadãos brasileiros (idem. pp. 56 a 57). Como percebe-se, havia mesmo mais tutano nesse osso.


[1] O Decreto nº 5.188, de 07 de abril de 1904 dividiu o território do Acre em três Departamentos: Alto-Acre; Alto Juruá e Alto Purus, sendo que a obrigatoriedade do envio de relatórios administrativos estava prevista no parágrafo 12. Para se ter acesso ao teor do Decreto ver: República dos Estados Unidos do Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Serviço de Documentação. Estados, Territórios e municípios; documentação. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1947, p. 517 a 521.

Sérgio Roberto Gomes de Souza é professor do curso de História da UFAC.

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