domingo, 14 de abril de 2013

A opulência dos espíritos

JOSÉ CLÁUDIO MOTA PORFIRO*

As almas ali habitantes eram de uma riqueza nunca dantes vista. A pobreza de coração lá não tinha guarida. Ali não havia espíritos mesquinhos, porque todos estavam prontos a se ajudarem, a se complementarem. Na hora necessária, no momento do infausto, nos golpes aplicados pela vida, todos estavam reunidos para resolver o problema ou para chorar a dor do irmão que sofria.

Falo-vos da Xapuri do meu tempo de criança e adolescente, uma época em que os meus pais foram alvos de favores que iam da assistência ao pé do leito de minha mãe que se contorcia com as dores do parto, às aulas particulares, de cortesia, com que fui brindado por aqueles corações infinitamente benignos. Por Deus!

Com relação à vida de menino pobre por mim vivida, em verdade vos digo que é, às vezes, um tanto azeda, mas, na maioria das ocasiões, é mesmo bem divertida, apesar das limitações e da falta de oportunidade para ir à matinê do vetusto Cine Rialto.

As minhas primeiras lembranças vêm dos anos sessenta, época em que aprendi a ler, aos cinco anos, contando com o talento da Regina, irmã de criação, hoje viajante de outros mundos, que me ensinou as primeiras letras e que hoje é o meu ponto inicial de referência na arte da busca da letra e da rima doce da poesia perfeita. Benza-nos o Onipotente.

Em casa, havia uma mesa grande, onde Regina, a irmã, dava aulas particulares para os filhos da elite média baixa lá dos meus cafundós. Foi lá que tomei contato pela primeira vez com José Edmilson Gomes Figueiredo, o Bacana, José Raimundo Barroso Bestene, o Marrau, e Cláudio da Costa Ferreira, o Cadite, expoentes da escolinha. Havia ainda o João Amorim Caminha, o Pançudo, e mais dois garotos um tanto arredios, atônitos, filhos do Seu Dino, o do Café, dentre outros menos cotados. Vi alguns pais  -  que não são necessariamente destes garotos  -   levarem varas de bambu para que os filhos fossem alcançados à distância pelo açoite da professora que nunca ficava enfezada e nem batia em ninguém. Mas ameaçava. Enfim, era aquela a raiz mestra do método brabo do carrancismo baseado na pancada, a fórmula básica a partir da qual grandes homens foram criados lá em Xapuri.

Observador que nem coruja, bem ao lado da professora Regina, eu me postava atento aos mínimos detalhes do que devia e do que não devia aprender. Em suma, aquela primeira escola foi a grande escola da minha vida, uma vez que os alunos todos tinham idade maior que a minha, uns mais, outros muito mais.

Eis, então, a base a partir de onde alcei os primeiros voos. Mas tudo ocorreu da melhor forma possível porque a pequena cidade era formada basicamente por parentes, amigos, compadres, camaradas. Lá, até havia um homem cujo nome era Parente Amigo. Verdade!

E o vai e vem ainda é grande na memória mais anterior. Há personagens dos mais variados matizes possíveis. Uns marcantes. Outros bem pior que isso.

Todo menino observador tem um ou dois ídolos moleques maiores que fazem as proezas mais incríveis que poucos conseguem. Tinha um molecão meio doido e um, primo dele, mais maluco ainda. A barra era uma brincadeira que consistia em um grupo correr atrás do outro até tocá-lo. Perdia o grupo que menos conseguisse alcançar os integrantes do outro. Esses dois carregavam codinomes bastante sugestivos. Um era o Índio-ruço. O outro era o Dapuí. Quanta vadiagem! Que apelidos fantásticos! As mães deles não foram tão criativas quando lhes pespegaram os nomes verdadeiros de Jorge e Antônio, como o santo da Capadócia, na Turquia, e o outro de Pádua, na Itália. Aliás, no Xapuri da minha época, todos ou quase todos tinham os apelidos mais alusivos que já vi na vida. Já pensou o tanto de poesia que cabe no nome de um moço chamado Caboclo da Morena? Espetacular! Magistral!

Certa noite, então, aí pelas oito, da janela da casa da minha tia Lourdes, na Rua Batista de Moraes, só assistia o movimento dos meninos, posto que a minha avó cearense furibunda jamais permitiria que eu participasse de uma contenda tão doida.

O ápice da doidice era quando os dois primos atravessavam o rio Acre, à noite, a nado, claro, um atrás do outro, os dois com a finalidade exclusiva de não perder o jogo... E iam e voltavam, como se nada tivesse acontecido, apesar de molhados até as almas pouco santas e nada virtuosas. Jamais.

Nunca fui dado a apanhar sol, de forma alguma, a não ser quando, aos quinze e dezesseis anos, fui obrigado pela vida a trabalhar calçando as ruas da nossa pequena e famosa Xapuri. Apesar do subterfúgio que era me esconder das moças, minhas amigas do colégio, que transitavam pela cidade e poderiam me reconhecer com a camisa amarrada à cabeça, foi também um tempo de bastante aprendizado ao lado de figuras como o Aurélio da Maria de Belém, o Antônio Maria, o Fernando Rasteireiro, o Célio Tigurão, o João Uchôa, o Edgar Mão de Pilão e o Estêvão da Dona Amélia. Joias raras da coroa da cidade princesa.

Pois, então. Em menino, via o sol brandir meio dia em ponto e uns moleques de famílias abastadas misturados a uns outros um tanto desfavorecidos, mais ou menos da minha idade, ficavam a empinar papagaio no meio da rua ou nos espaços urbanos entre o grupo escolar e a Igreja. Era mesmo assim, minha senhora. Lá havia as famosas guerras de pipas no céu, tal e qual é descrito na poesia do Chico Buarque. E, como em qualquer área da experiência humana na terra, aí também se destacavam talentos natos na arte de ficar de cara para o sol tentando cortar a linha das pipas um do outro. De novo, eu cá da janela do meu observatório, agora instalado na Rua Vinte e Quatro de Janeiro, ficava a analisar os truques e manhas e trejeitos dos craques cujas almas voavam nos céus através dos seus sonhos de moleques de futuro. Lembro um melhor que o outro, como o já citado Cadite, o Mirim, o Luís Carlos Simão, o Bainha, o Tufizinho, dentre muitos.

Boas lembranças estas, meus amigos! Que Deus lhes abençoe onde quer que estejam.

Eu aprendia tudo, na teoria, uma vez que, na prática, nunca consegui levantar um papagaio, jamais joguei peteca bolinha de gude, não derrubei sequer uma manga porque não acertava pedradas, apesar das dezenas de mangueiras e apesar de estes frutos amadurecerem em profusão na época no início do inverno. Estrategista de dar gosto à minha mãe, não fui craque de futebol porque a escola deveria ser levada a sério porque a escola forma para a vida e a vida deve também ser levada muito a sério. Era esta uma das máximas e a filosofia dela, da Dona Nenen do Seu Gibiri.

- É preciso caprichar em tudo, meu rapaz! – Eram as palavras de mamãe desde muito cedo da minha vida, até por último, quando o dia dela se fez noite escura, depois de oitenta e quatro voltas ao  redor do sol de Deus.

Já aos doze, quase um adulto, pela manhã, ia ganhar alguns trocados, mas também estava em busca de uma profissão. Trabalhei ou fui aprendiz do moveleiro mais exímio de Xapuri, o Elias Monteiro Luz, codinome Breque. Aprendi, principalmente, a manusear ferramentas de marceneiro que hoje não mais existem, como o graminho, a galopa, o sargento, a torquês, a serra de volta e o arco de pua. Ajudei o bom homem a fazer os caixões nos quais enterramos homens e mulheres de muita eminência da minha cidade. Muitos foram diretos para o céu. Outros, nem tanto.

Aos domingos, na missa das crianças, às nove da manhã, lá estávamos nós, eu e os meus irmãos mais velhos e também os mais novos que sempre acreditaram nas obras da Divina Providência. De início, pouco entendia do riscado, uma vez que a Santa Missa era rezada em latim.

Ave Maria, gratia plena. Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus frutus ventri tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae. Amen.

O Padre Carlos Maria Zuchinni mandava muito bem, mas eu tinha uns cinco anos e não manjava patavina. Só depois é que estudei latim, na Ufac, e consegui entender as idas e vindas do genitivo, do possessivo e do ablativo da língua dos romanos da era clássica da Humanidade.

Com as bênçãos da avó cearense iracunda, pertencente à Congregação de Nossa Senhora das Dores, aquelas mulheres que portavam uma fita roxa ao pescoço, tornei-me, enfim, um sacristão de brilho um tanto opaco cujo currículo não foi dos mais brilhantes posto que, apesar de uns quatro anos no ofício, poucas vezes cheguei ao posto máximo da ordem cuja função mais importante entre os nossos era balançar o badalo ou a campainha do Padre José na hora do Santíssimo.

Também, pudera! Havia um garoto, quase um rapaz, que quase levava para casa o instrumento de fazer o barulho divinal da Consagração. Era o Tião da Dona Oneide, um quase irmão nosso que se preocupava muito mais em vigiar o badalo ou dar cascudos nos menores que mesmo com alguma outra coisa que tivesse a ver com os preceitos dogmáticos da Santa Madre Igreja.

E por aí a vida foi sendo tocada de barriga cheia, porque o estivador lá de casa, além do grande pai que foi, era ainda um competente caçador.

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· Cronista ruim de bola: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br – Faça comentários!

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