José Cláudio Mota Porfiro
A passarada gorjeia com as cores do inverno. Ri. Fica alvoroçada. Basta que a chuva cesse por algumas horas. O rio se faz majestoso, quase arrogante, em sua largura imensa do mês de janeiro. A natureza é feliz porque sabe que tudo se recompõe. Mas é madrasta que só o nome arrasta, insisto, porque faz parir os filhos humanos e lhes deixa à mercê da própria sorte, para depois devolvê-los ao pó da terra quando bem entender. Mães normais têm os rebentos, criam-lhes com cuidado e querem para eles um futuro cheio da felicidade mais plena. É bom pensar com carinho no quanto sofre essa gente miúda amazônica esquecida nos mais ermos grotões do Brasil.
E lá vai o rio no rumo de baixo...
Às quatro da manhã, já ouvimos as músicas de Orlando Silva, ou de Carlos Alberto, ou de Vicente Celestino que, como água de enchente, vem invadindo o rio, a mata, os seringais, as gentes. A paisagem toda é como se fosse agora mais feliz, apesar das circunstâncias ditadas pela natureza indescritível, indecifrável.
O dono da grande lancha Maria Amélia, de nome João Barrão, mantém, acoplado a um pequeno mastro colocado acima do segundo convés, um auto-falante ligado a uma pequena vitrola que propaga a alegria pelos sombrios ermos do alto Acre. Ele ainda está a uma hora de viagem e, aqui, já estamos ouvindo as modinhas cujas melodias enchem os corações desses deserdados da história da pátria amada.
Hoje é o dia 16 de janeiro. É um ano novo como todos, depois dos festejos de Natal, quando bebemos bastante vinho espanhol, mais uma vez, da coleção do patrão. Um mutum que estava em um cercado, é mais uma grata surpresa pelo paladar bem parecido, todavia bem melhor, que o faisão, como haviam dito os amigos de Belém.
Às sete da matina, já estamos todos instalados na embarcação. Eu, o patrão, Dona Nenzinha, o cumpadi Estácio, a cumadi Moça, as crianças e mais umas quatro famílias dos seringueiros que se dispuseram a viajar e que melhor se houveram nos ajustes de contas.
- Passeia quem tem dinheiro sobrando. O sujeito que está devendo não tem nada que ir para os festejos. É como se o santo padroeiro não o houvesse abençoado durante o ano que passou. É melhor não ir porque não merece ou não fez por merecer. Está certo o São Sebastião. - É o que prega o bom patrão.
O convés de baixo está cheio e o de cima quase. Ainda apanharemos bastante gente nos seringais Palmarizinho e Albrácia. As crianças são muito desconfiadas com relação aos estranhos. Não riem, não brincam, quase não se movem. Os pais mexem nos sacos de encauchado meio vazios que devem voltar cheios de chita, extrato, linha de costura, agulha, grampo para cabelo, brilhantina, remédio contra piolho, contra lombriga, dentre outros muitos artigos de primeira ou segunda necessidade.
O moço de convés atende pelo apelido de Tatu. O outro funcionário é o Ronda e um terceiro é o Zé da Trompa, além de João Barrão, o proprietário da lancha, um sujeito conversador e deveras animado, inclusive, com a economia da borracha que, segundo consta, poderá ter um novo alento dentro em breve devido alguns boatos segundo os quais os aliados - Estados Unidos, França e Inglaterra, dentre outros - poderão precisar do produto extraído por aqui, uma vez que os japoneses invadiram e dominaram os grandes produtores, os protetorados ingleses da Ásia. Parece castigo. Eles roubaram as sementes da seringueira amazônica e agora delas não podem fazer uso.
- Parece que agora é a nossa vez de ganhar muito dinheiro. Novamente, o Acre voltará a ser rico e muitos dos nossos sairão do imprensado em que se encontram devido a queda dos preços nos anos que passaram, desde 1929, quando a economia do mundo sofreu um grande abalo porque os americanos se endividaram e quebraram, o que trouxe graves consequências também para o Brasil.
O João Barrão, realmente, sabe do que está falando. O homem não é apenas mais um falastrão.
A água do rio lambe a borda da lancha por onde passam os tripulantes molhados vestidos em calções de listas azuis e brancas. Há muito balseiro - que são as árvores da beira do rio que vão sendo arrastadas com o barranco pela enchente amazônica. A parte do rio por onde a lancha desliza é sempre a oposta às curvas. Parece lisa, sem nenhum reboliço, como no meio do caudal. Aí há menos possibilidades de irmos de encontro a um tronco qualquer que esteja descendo rio abaixo. Tudo isto prova a incrível habilidade do pequeno grande comandante Barrão junto ao leme da Maria Amélia.
Um número menor de pessoas embarcou no Palmarizinho e outro ainda menor, no Albrácia. É que os donos desses seringais dispõem de barcos para o transporte dos seringueiros rumo a Xapuri, onde rezarão todos, juntos, para que São Sebastião, o Padroeiro, os livre de todos os males que a natureza brutal coloca em meio aos seus caminhos.
Estou cada vez mais distante de casa. Navegamos rumo oeste. É por este caminho que se pode chegar à Bolívia e ao Peru.
O barracão do Novo Catete fica um pouco distante da margem e não é visível a partir do rio. O Seringal Boa Vista, da família França, em seguida, tem como cartão postal uma bela residência dos patrões muito bem desenhada, pintada de branco, com telhado estilo quatro-águas, varandas amplas, cortinas, beirais em madeira decorada a serrote, grandes jarros com plantas ornamentais e coqueiros no terreiro da vivenda deveras aprazível.
Navegamos mais uns quinze minutos e já a paisagem se torna diferente. Aparecem as fileiras de casas da Rua Major Salinas, conforme comentário do prático chamado Ronda.
- Enfim, estamos em Xapuri! – Exclamei!
Olho o relógio de algibeira. Belo ainda, apesar das idas e vindas. É meio dia. O sol está a pino cozinhando a moleira dos poucos que não usam chapéu. Quase todos usam alguma coisa para a proteção, inclusive as mulheres dos seringueiros que amarram panos ou lenços à cabeça.
Há dois navios de médio porte ancorados no pequeno porto, o Envira e o Sobral Santos. O desembarque é feito através do Palanque, um ancoradouro simpático, bem desenhado, elegante, que recebe os recém-chegados mais ilustres, inclusive nós que temos esse privilégio porque, a esta hora, nenhuma embarcação está por aportar.
- Isto aqui é muito parecido com a civilização. - Foi o que eu disse ao cumpadi Estácio, que nada entendeu. Então, prometi a mim mesmo não mais fazer comentário algum que seja para glosar a pequena e mais velha cidade do alto Rio Acre.
Eu e o patrão, Seu João, usamos ternos quase iguais, bege claro e amassados um quanto o outro. A grande maioria dos homens assim está trajada. São nordestinos na superior maioria. Os nossos gestos são praticamente os mesmos. Lenço passado na cara suada. Mexida no chapéu de massa. Apanhar a ou as malas e seguir para a Hospedaria Santo Antônio, logo ali, depois de um casarão verde que dizem ser um hospital. Em verdade, bate a exaustão e a vontade de tomar banho e estirar-me numa rede à sombra para um bom sono depois da bóia.
- Que folga a minha! - É o que penso.
O almoço é servido meia hora depois. Está uma verdadeira beleza. Há pirarucu fresco e salgado, jabá com jerimum, carne de porco frita e de boi cozida. Vem alguma pouca verdura de uma horta do colégio das freiras; estas vêm a ser as mesmas que viajaram comigo até a Boca do Lago.
A construção da estalagem é simples, mas em alvenaria. Há no meu aposento duas janelas e uma porta larga. Por ali corre um ventinho leve que me convida a atar a rede preguiçosa pensada anteriormente.
É um sono tranquilo embalado por sonhos que me levam de volta a Belém do Pará, a base a partir da qual alcei voo rumo à minha aventura quase inconsequente.
Às quatro, ainda o sol está bem forte. Depois de um banho, parto no rumo do comércio que fica logo ali bem perto. A intenção é rever os amigos portugueses, principalmente os mais simples, com os quais tive contato no navio.
Um velho provérbio árabe assalta-me as ideias. Penso que nenhuma pessoa é tão desprovida de amigos para não encontrar um suficientemente sincero que lhe diga verdades desagradáveis. Eu, então, ainda não tenho nenhum desses. Talvez seja isto o que me faz falta.
Passo por um mercado público atravancado de quinquilharias próprias para enganar os seringueiros. Numa esquina, está um comerciante vestido em camisa de punho e calça branca, com óculos pincinê e cara de turco. Avisto um grupo de homens, também quase todos de terno branco e chapéu de massa, a disputarem festiva partida de gamão. À porta de uma farmácia, então, está de pé e garboso o bom amigo português Eurico Gomes Fonseca.
- Dá-me um abraço, ó cearense! Como estás lá por aquelas bandas? - É o cumprimento efusivo do amigo de viagem.
De lá, subimos a Rua Seis de Agosto rumo à Rua Dezessete de Novembro, na mesma direção. Na próxima esquina, a uns duzentos metros, encontro Tomás Gomes Fonseca, o outro amigo, irmão do primeiro.
Como esse mundão amazônico aproxima pessoas que moram tão distantes umas das outras e, mesmo por isso, tão pouco se veem. Coisa de Deus!
José Cláudio Mota Porfiro é xapuriense, escritor, poeta, boêmio, professor, irmão do Manoel Gibiri e mais um tantão de coisas. Escreve no blog Impressões Gerais.
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