domingo, 16 de outubro de 2011

Meninice

José Cláudio Mota Porfiro

CRIANA1

Hoje é o dia das crianças daqui de casa também, como tem sido, diariamente, desde algum tempo. Celebridades da terra, em jornal impresso, dizem de um tempo que já vai longe. Como todas, também a minha infância foi tal qual a água que desce da bica para nunca mais subir.

Então, minha madrinha Eulália Brasileiro, a linguagem usada aqui não pode ser recheada de salamaleques ou figuras de estilo do tipo metáforas, justo porque eu não tive exatamente um tempo de infância, mas vivi, sim, a meninice folgazã e arriscada, bem do jeito daquela época, nas colônias e seringais, a bordo de canoas ou em lombo de cavalos, ou na carreira com medo de onça, através dos varadouros e dos rios e barrancos do Acre, sempre em companhia do meu pai, o Gibiri de Xapuri, ou da minha avó materna cearense valente, a Dona Mariinha, nascida em 1896.

- Vigie, minino! Era a forma com que ela me chamava a atenção. É claro que a frase vinha acompanhada de um semblante sisudo que impunha respeito em todos da raça dos lá de casa.

Na fazendinha do meu tio Zé Maciel, ou na colônia do cumpadi Jaime de Barros, pescava do jiju e do cará, nos igarapés, ao filhote e ao jundiá, no Rio Acre, a nossa grande dádiva de Deus.

Trotava, galopava ou corria em cavalos em pelo. Um boi chamado Macaco também passeou comigo pra cá e pra lá, sem que fosse necessária sequer uma palmada no lombo ou na anca de quaisquer dos animais. À noite, os mais velhos dançavam o forró, enquanto eu ficava batendo carapanã e pensando sobre qual fórmula poderia ser usada para, um dia, quem sabe, tornar-me doutor. Vejam só o moleque!

Um dia, lá no Seringal Albrácia, Colocação Morada Nova, montei um potro e o meu tio Perneta passou a perna na égua. O animal mais novo saiu em velocidade no rastro da mãe e, no aceiro do campo, quando ela parou, ele brecou de vez e eu passei por cima do pescoço do bicho e fui dar com as fuças numa touceira de capim santo. Pra aprender!

Como todos os meninos pobres, eu também sonhei com a ocasião futura em que haveria de me tornar um doutor, desses de consultar aqueles meninozinhos e meninazinhas cheios de vermes, com os quais eu convivia, sem problemas, a brincar na calçada da rua dos meus sonhos de ainda hoje.

Dos meninos paupérrimos da vizinha Vila Natal, tendo em vista ter contato, hoje, com um que se fez empresário forte da construção civil, lembro o que Charles Chaplin escreveu: “Uma pessoa pode ter uma infância triste e pobre e, mesmo assim, chegar a ser muito feliz na maturidade. Da mesma forma, pode nascer num berço de ouro e sentir-se enjaulada pelo resto da vida”.

Não tive maiores problemas de saúde, depois dos quebrantos da primeira infância. Tomei pouca panvermina e nunca experimentei o famigerado tiro seguro, remédio terrivelmente amargo e enjoativo, bom no combate às áscaris, oxiúrus e lumbricóides.

Comia bem. Gostava das verduras e das frutas cultivadas ali mesmo no quintal. O jerimum era comum no cardápio. Estava permanentemente calçado em alpercatas de couro cru ou em bons sapatos de seringa, daqueles que são reforçados com uma palmilha de sandália de borracha, para amenizar quase todos os riscos de quem caçava de baladeira, pescava de anzol ou ajudava os tios mais velhos na lida da roça, principalmente, entre os meses de junho e julho, quando me tornava um colonheiro, ou quase um seringueiro.

A professora Orfisa Camelo Bacelar, hoje falecida e a quem devo de tudo um pouco, um dia gravou para sempre em minha mente:

- Preste muita atenção, seu Zé Cláudio. Se a escola forma para a vida e você acha que deve levar a vida a sério, então, antes, você deve levar a escola também a sério. Não tem outro jeito.
Era obediente, copiava os bons exemplos  -  mesmo em casa, do bom irmão Marcos - e não era levado. Fazia os deveres escolares nos detalhes. Como era ativo, dito esperto, trabalhador, também não escapei de pequenos acidentes, como uma ferrada de arraia enquanto pescava na boca do Igarapé Filipinas. Como o saco plástico que, por descuido, derreteu ao fogo, pingou e me furou o pé esquerdo. Como uma pedrada que sapequei na cabeça do Motinha, meu irmão, o que me rendeu umas boas lamboradas de papai.  Como os cortes de terçado, enquanto fabricava brinquedos de menino pobre. Como quando fiquei perdido por três horas na mata bruta, no seringal, de onde consegui sair ileso, mas com uma fome de cachorro de seringueiro.

À noite, sonhava novamente. De dia estudava ou trabalhava. Vendia mingau de banana ou de arroz e quibe de macaxeira. Brincava mais ou menos entre cinco e seis da tarde, ou aos sábados e domingos. A barra era uma brincadeira que consistia em um grupo de meninos correrem atrás do outro até pegar, tocar. A peteca é chamada bolinha de gude em outras re-giões brasileiras. A perna de pau era também confeccionada por mim e me fazia sonhar cada vez mais, uma vez que, através dela, apreciava pelas janelas altas as casas dos turcos e portugueses ricos ou mais ou menos.

Uma vez, no seringal, usando peconha de corda, subi num pé de jitó alto e levei lá pra cima da árvore uma tábua de caixa de sabão bem fininha amarrada na extremidade a um cordão. Aí, comecei a rodar velozmente o tal apetrecho que fazia um barulho parecido com o esturro da onça vermelha... Não demorou cinco minutos e a bicha já estava embaixo da árvore cheirando o chão e olhando pra cima. Meu pai deu-lhe um tiro de dezesseis mesmo entre os olhos, tirou o couro e o vendeu aos mascates bolivianos.

Depois, era manhãzinha, a caríssima professora Enedina Sant’Ana de Menezes passou lá por casa em hora crucial e tomou das mãos de mamãe, e atirou ao fogão de lenha, uma palmatória de madeira maçaranduba novinha com a qual nos era enfiada na cabeça  a tabuada, a separação silábica, os dezesseis pontos cardeais, as capitais do Brasil e os nomes de todos os grandes, desde D. Manuel, O Venturoso, patrão de Pedro Álvares Cabral, até João Goulart, de quem mamãe era fã ardorosa.

- Nenem, hoje em dia não se bate mais em criança, porque fica muito mais difícil esses meninos aprenderem alguma coisa. Faça com que eles estudem num local em silêncio, em voz alta, de preferência... – Foram as palavras de uma professora muito à frente do seu tempo. À tarde, lá estava a professora em minha casa, mais uma vez, para ver o efeito do fogo na palmatória de maçaranduba. Não havia sobrado nem as cinzas. Eram mais de cinco da tarde e papai foi quem reclamou do fim do instrumento de açoite, tão bem feito, quase uma obra de arte.

- Mas Gibiri, meu amigo. O Mota é ainda uma criança e o Zé Cláudio tá chegando na adolescência; já tem quase treze anos. - Ao que o meu pai, do alto da sua metodologia positivista, retrucou:
- Mas professora. Deixe disso. Fi de pobre não tem essas friscura, não. Ou o caba passa de menino bom a homi trabaiador, ou passa de minino severgõin a véi safado. Ou uma ou outra. Não tem situação diferente que seja.

Em 1970, o Brasil ganhou a copa do mundo pela terceira vez. Lá em casa, nós ouvimos  -  testemunhamos  -  tudo pelo rádio, até o último gol contra a Itália. Houve muito foguetório, o carnaval e a bebedeira correram na largura da boca e o Padre José, nosso pároco, tocou trezentas badaladas no sino da Matriz de São Sebastião. Findo o jogo, eu e uma turma de garotos da minha idade fomos para o campinho atrás da escola para colocar em prática tudo o que havíamos aprendido com a grande seleção do Brasil.

Eu tinha treze anos e era gente grande, uma vez que produzia para ajudar os pais no sustento dos irmãos menores, esta, uma tarefa que me coube até agora já próximo da virada do novo milênio.
Já não sou um menino qualquer, mas penso ainda ter Deus muito a nos presentear, inclusive nos dias das crianças lá de casa, que são todos os dias das nossas vidas felizes. Graças!

José Cláudio Mota Porfiro escreve no blog Impressões Gerais.

Nenhum comentário: