O aceiro do campo de capim nativo que findava com o começo da mata bruta, fechada e misteriosa era o limite de um pequeno mundo chamado Novo Catete, margem do Rio Acre, a uma hora de barco abaixo de Xapuri. Cheguei ali por volta dos 9 meses de idade, depois que minha jovem mãe, desamparada do mundo, separada do marido, desprezada pela família e sem possuir condições para me prover o sagrado sustento, entregou-me àqueles que vieram a ser, efetivamente, os pais que tive na vida: Ricarda Figueiredo e Antônio Firmino da Silva, um casal guerreiro a quem tudo devo.
Costumo dizer que afetivamente tive quatro pais, já que os biológicos, Raimundo Cardoso, o popular “Carne Bife”, e Maria Virgínia, apenas os conheci depois de adulto, quando ambos passaram a ocupar seus devidos lugares na história da minha vida, que se parece com aqueles filmes de roteiro bastante complexo, com idas e vindas, cheia de equações que talvez eu jamais consiga resolver. A despeito disso tudo, me considero uma pessoa realizada. Certamente nem tanto no aspecto material, mas naquele que faz com que qualquer vivente se sinta em paz com a vida e com sua própria consciência. Mas tudo começou naquele pequeno mundo, chamado Novo Catete.
Minha infância se deu naqueles campos, em meio a animais de carga, embarque de borracha e castanha que saíam para os armazéns da Casa Kalume e desembarque de mercadorias que de lá vinham para ser levadas ao centro do seringal. O Novo Catete era como se chamava a sede do seringal Porto Franco, localizada à margem direita do rio, em frente a uma imensa curva que formava uma extensa praia de areia branquíssima, um pouco acima da localidade chamada Mucuripe. No mesmo local, no lugar em que a água barrenta formava um grande remanso, acreditava-se ser a moradia de uma cobra grande que por muito tempo habitou o meu imaginário e que me fazia manter, para a tranquilidade de minha mãe, certa distância daquele “poço”.
Lembro-me que tinha um medo insano e injustificável de chuva. E que adorava tomar banho de igarapé e procurar ninhos de passarinhos na vegetação que se formava na parte mais alta da barranca do rio. Recordo-me também que gostava de navegar na água represada pela enchente de um dos igarapés que cortavam o Novo Catete em uma pequena canoa que foi rebocada por meu pai quando esta baixava o rio depois de haver “fugido” numa noite de tempestade. Era assim que se referiam os caboclos daquela época às pequenas embarcações que eram arrancadas dos locais onde estavam atracadas pela força dos repiquetes.
Morávamos num velho barracão de madeira cujos cômodos se resumiam ao armazém, onde eram estocadas as mercadorias que meu pai comercializava nos seringais; uma sala de estar que muitas vezes era transformada em dormitório para os visitantes; um quarto, que o casal muitas vezes era obrigado a dividir com os filhos; e a cozinha que dava de fundos com o caminho que ia até o igarapé que nos abastecia de água fresca e cristalina. A uns 15 metros da casa, ficava um velho paiol com uma cocheira, onde os burros eram arreados e alimentados. Um pouco mais adiante, havia um inesquecível pé de fruta-pão em cuja sombra quantas vezes me refugiei do mundo para minhas brincadeiras de criança.
O barracão distava cerca de 300 metros da escola Epaminondas Martins, onde lecionava o professor Fernando Dantas, o popular Fernandão, hoje aposentado. Ele morava na própria escola com a esposa Maria Rodrigues e o casal de filhos: José, hoje folcloricamente conhecido como “Zezão”, e Maria Lúcia, uma garota franzina e conversadora que um dia vi com um osso de um dos braços exposto depois de uma queda no barranco do igarapé. Tiveram mais duas filhas mulheres depois que saíram do Novo Catete para Xapuri. No espaço entre as duas construções haviam cerca de cinco frondosas mangueiras que além de fornecer sombra farta e frutos deliciosos guardavam histórias de mistérios e assombrações que brotavam da mente fértil dos moradores do local.
Adiante da escola, quase no começo do varadouro que levava seringal adentro, vivia minha avó paterna, Nazaré, e o último dos seus esposos, o tio Moreira. Dali, daquele velho terreiro, guardo uma das mais antigas e dolorosas recordações da minha infância, quando, por volta dos 4 anos de idade, corri para abrir uma daquelas porteiras de quatro paus comuns no seringal e agarrei em cheio, com a mão direita, um enorme piolho de preguiça, espécie de lagarta gigante e peluda que causa forte queimadura na pele de quem incorre no descuido de tocá-la. Com extrema habilidade, tio Moreira queimou os pelos do inseto que ficaram grudados em minha mão sem que o fogo chegasse a me ferir. Era um grande conhecedor da vida na mata.
Do outro lado de um igarapé que cortava o campo, vivia uma tia, irmã de meu pai. Chamava-se Adelaide. Seu marido, Martinho Lopes, era um sujeito carrancudo, mal humorado e metido a durão. Lembro-me que certa vez obrigou minha irmã Francisca das Neves a apagar com os pés um princípio de incêndio no campo da propriedade que fora iniciado por ela mesma com uma bituca de cigarro que teimava em fumar às escondida na companhia de sua melhor amiga, chamada Mercedes, filha de um sujeito fantástico chamado ‘seu’ Braulino, que vem a ser pai do comerciante João Cardoso, proprietário do “Bazar Cardoso”, em Xapuri.
Meu pai queria resolver o caso com um velho trabuco enferrujado que guardava em casa, mas pessoa de paz e de bons princípios que era, logo esfriou a cabeça e entregou o caso para o maior de todos os Juízes. O ano eu não me recordo, mas era a segunda metade da década de 1970, um tempo em que parafernálias como televisão e telefone eram novidades conhecidas por pouquíssimas pessoas no Acre. Veículo de comunicação e entretenimento apenas o rádio, uma grande paixão do meu velho, que era fã de Luís Gonzaga, o rei do baião. Histórias do velho Lua como Samarica parteira e a Apologia ao jumento faziam a alegria daquele homem rude e sem escolaridade que fazia cálculos inacreditáveis “de cabeça”.
Mas apesar de ter uma espécie de adoração por Gonzagão, as músicas preferidas de meu pai eram uma valsa chamada Lúcia, do Mestre Cupinjó, e o choro Saxofone, porque choras, de Jararaca e Ratinho. Na Rádio Nacional da Amazônia, nos poucos momentos de folga e lazer, o velho se deleitava com os programas apresentados por Edelson Moura e Márcia Ferreira, que foi a primeira comunicadora brasileira a falar no transmissor de maior potência da América latina, com 250 quilowatts em Ondas Curtas de 25 metros, com uma programação pioneira, voltada para a Região Amazônica. Era o ano de 1977, quanto tinha eu apenas 6 anos de idade e começava a me fascinar por esse veículo de comunicação que mais tarde seria tão importante em minha vida.
Minha mãe, que me pegou ao colo aos 9 meses de vida, era aquela tradicional dona de casa de seringal, que gostava de cozinhar tudo o que combinasse com leite de castanha. Batizada com o pomposo nome de Ricarda Castelo Figueiredo, era conhecida mesmo como a dona Zizi do Novo Catete, ou simplesmente a Zizi do Antônio Firmino. Era a mais velha dos 10 filhos que se criaram do casal João e Maria Figueiredo. Ele, nordestino do Rio Grande do Norte, e ela descendente direta de índios da região do alto rio Xapuri. O patriarca da família Figueiredo morreu no ano de 1973. Vó Maria faleceu em 1984, numa pequena casa localizada na rua Floriano Peixoto, onde hoje vive o filho mais novo, Pedro Figueiredo e a esposa Delzira.
Dona Zizi foi a única que optou por continuar na vida simples do seringal depois que seus irmãos foram para a cidade estudar e trabalhar com a ajuda dos parentes mais abastados. E da lá só saiu quando já tinha quase 50 anos de idade. Em Xapuri, trabalhou na antiga Biblioteca Pública Municipal, tendo sido contratada pelo ex-prefeito Antônio Farias, num tempo em que concurso não era exigência legal para se adentrar no serviço público. A vinda para a cidade se deu mais pela necessidade de eu e minha irmã Francisca estudarmos. De fato, ela nunca deixou o Novo Catete, que por sua vez habitou dentro dela até os instantes finais de sua vida.
Viúva ainda jovem de um farmacêutico chamado Guimarães, que era alcoólatra, casou depois de algum tempo, a contragosto do pai, com aquele seringueiro de personalidade forte e de poucas palavras que cortava seringa na distante e temida colocação Cova da onça, onde viveram e geraram minha irmã Francisca. Depois de algum tempo, com a velhice e a doença do patriarca, o casal veio para a margem, onde Antônio Firmino passou a trabalhar como comboieiro para o sogro, que era dono do seringal que mais tarde viria a pertencer ao empresário e político Jorge Kalume, que tempos depois se tornaria governador e senador da República.
Antônio Firmino jamais deixou o seringal. Continuou lá depois da vinda da família para Xapuri, no ano de 1978, onde comprou dois terrenos na rua Deocleciano Lago. Na verdade, naquela época a rua ainda não existia. Havia ali apenas uma casa em meio a um imenso matagal, onde morava a dona Raimunda Galdino, esposa do Emídio, um senhor de uns cinquenta e poucos anos, dado ao vício da bebida, com quem ela afirmava abertamente que “não fazia mais vida”. Dona Raimunda era benzedeira famosa na cidade e muitas mães de família chegavam até sua casa em busca de cura para males como “mau olhado”, “quebranto” e “vento caído”.
Meu pai trabalhava no seringal durante toda a semana e vinha no fim dela ficar junto com a família. Havia construído um modesta casa em um dos terrenos adquiridos e deixou o outro para quando a filha casasse. Cavou um poço, botou luz elétrica e comprou uma geladeira a querosene, um ventilador movido a pilhas, um sofá vermelho e uma televisão em preto e branco da marca Telefunken, de 24 polegadas, adquirida na loja TV Lar. Naquele tempo não havia entrega em domicílio e o velho chegou em casa com aquela caixa esquisita às costas. Foi uma das poucas coisas que ele aproveitou da cidade enquanto viveu.
Chegou a botar uma pequena mercearia na rua Cel. Brandão, em frente à entrada da rua do campo de futebol, mas ficar sentado atrás de um balcão definitivamente não combinava com o seu modo de vida. Amava o seringal, adorava lidar com os animais, burros de carga a quem tratava como se fossem pessoas. Sua inseparável montaria se chamava Boneca, uma mula antipática e cheia de mimos. Minha mãe costumava dizer, brincando, que a burra era melhor tratada que ela mesma. Lembro-me de um burro velho, já no fim da vida, que foi batizado de Januário, em homenagem ao pai de Luís Gonzaga, o Rei do Baião. Vi Januário morrer depois de cair do barranco em frente ao portão que dava para o barracão. Já não enxergava mais e seu andar era trôpego.
Fomos - eu, minha irmã e nossa mãe - nos acostumando com a nova vida. Meu pai, não. Morreu lá, nos campos do Novo Catete, no ano de 1982, num lugar de onde não imaginava sair para viver na cidade. Era um hóspede dos finais de semana. Voltou para o Novo Catete, seu verdadeiro lar, onde tombou no meio do campo, quando apanhava o comboio de burros para mais uma viagem ao “centro”. Mas deixou um legado fortíssimo de ética e honradez. Homem simples, iletrado e bastante rude, a quem jamais vi alguém advertir ou mesmo admoestar. Uma cruz no meio do que hoje é apenas capoeira marca o último momento daquele que foi a minha maior referência de vida, moral e caráter.
Não nos deixou com posses, mas com uma herança que dinheiro nenhum substitui. Orgulho do que e de quem éramos foi a base com a qual dona Zizi deu, apesar do duro e eterno luto, seguimento à minha educação. A irmã Francisca já casara quando ele se foi. E prosseguimos vivendo naquela rua onde moram hoje o Rivando Mota, o Iran Mendonça e o Nader Sarkis. Este último uma das grandes testemunhas de parte de minha história de vida. Ainda hoje, quando visito um desses amigos, volto no tempo, a lembrar daqueles tempos vividos, e percebo que o tempo nos leva muitas coisas, mas há outras que nem ele nem as pessoas, por mais mesquinhas que sejam, nos conseguem tirar.
Naquela região da cidade, se iniciou mais uma etapa da minha vida simples de menino criado no seringal. Logo comecei a estudar e uma das primeiras grandes felicidades foi a experiência de envergar meu primeiro “kichute”, comprado na Casa Portuguesa, com cadarços amarrados à canela fina e cinzenta escondida por um obrigatório par de meias brancas. As calças e a camisa eram de tergal e o cabelo era cortado ao estilo Recruta Zero, pelo saudoso barbeiro Antonino, o que me fez tomar muitos “filés” na cabeça pelada até que minha mãe desistisse daquele hábito que visava economizar dinheiro e evitar os malditos piolhos.
Pretendo continuar contando aqui algumas histórias tão intensamente vividas. E terminar por lembrar e valorizar muitas personagens comuns dessa tragicomédia chamada vida, da qual sou apenas mais um coadjuvante. Peço perdão por qualquer pieguice, mas impossível que qualquer memória não seja permeada de amor e saudade. Talvez o que vivemos e aprendemos de bom sejam realmente as únicas verdadeiras riquezas que adquirimos nesse mundo. São coisas que ninguém nos toma. Nem à força e muito menos pela tentativa de nos negar aquilo que a nossa própria existência é a maior certificadora. E a vida continua seguindo sua rota, alheia aos dramas e tragédias, inexorável, como o tempo, sem esperar por ninguém.
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