domingo, 28 de julho de 2013

Monólogo para loucos que mordem

*CLÁUDIO MOTTA

Não vejo nenhuma utilidade em um errante extremado, reincidente há milênios, como tu, ó poeta bestial, ficar se atormentando com aquilo de ruim que já fez. O que de melhor pode acontecer é a emenda ficar bem pior que o soneto. Tudo poderá entortar de vez.

Por isto, mesmo consciente do erro, tu não tens te arrependido, nunca. Não tens pedido desculpas, jamais. Segues sempre em frente, na marra, e bates com a cara na parede ou com os cornos na lama pútrida dos mal avaliados por si próprios. Estás ferrado, meu velho tripudiador, tal e qual a mariposa que bruxuleia noite afora até cair morta pela luz do dia que a ofusca e pelo orvalho que a faz murcharem as asas.

Já ouviste aquele que diz não se arrepender do que fez?

Minha caríssima jornalista linda  -  Isabela  -  que não pode casar ainda só depois que se formar... Cá de minha parte, tenho passado por dias bem moderados, incrivelmente sóbrios, quase castos, inocentes mesmo, puros com certeza, ingênuos até. Torna-se então difícil dar crédito a mim mesmo, mas noto que a meia idade me permite dias como esses, logo seguidos por tempos em que a barbárie da época e a estupidificação da mente leva-me aos templos do prazer que me furtam a vida abatida entre a lascívia do corpo e o embebedamento da alma.

- Não. Eu não me arrependo!  -  Assim tu o dizes, como se fosses o senhor dos anéis e das verdades plausíveis e também das injustificáveis.

Como não esqueço as barbaridades que proferes sem nenhum remorso, afirmo-te que já ouvi da tua e de outras muitas bocas tal assertiva ser dita até com muita ênfase. Tu não és o senhor do destino, o dono da providência e não estás acima do bem e do mal. Ora, tá! Quem és tu, ó meu nobre cavaleiro do apocalipse às avessas?

É pouco provável que me compreendas, mas te respondo com as palavras de Zaratustra, que desde há muito são exatamente o meu porte de armas e a minha moda de viver, viola, cavaco e bandolim:

Moro em minha própria casa

Nada imitei de ninguém

E ri de todo traste

Que não riu de si também.

De cá da serenidade rotineira que é este céu em que agora faço morada, tenho tentado passar a ti receitas preciosas que tu não copias porque não mereces decifrar. Ou não decifras porque sequer sabe copiar.

Em um momento do dia, tu te arrependes por não ter feito aquilo que não fez. Logo em seguida, vem o arrependimento que paira sobre o que por você foi feito em detrimento ou prejuízo de uma ou de muitas delas. Em realidade, caem gotas de sangue e vêm as dores do espírito quando lembras ter agido em agravo de alguém, conscientemente. 

Não roubaste, é provável. Não mataste, é certo. Não desonraste pai e mãe, de forma alguma. Todavia, olhaste para a mulher do próximo inclusive quando o próximo estava bem próximo e tu estavas com a cara rica de malte. Depois, na festa de dezoito anos, ela passou rebolando dentro de um vestido saco tendo ao lado um cara fraco e você foi tirá-la pra dançar... Ela não dançou porque tu também não te atreveste a tanto. Só onda... Simplesmente, a ninfeta irmã da aniversariante foi passando e a alma imbecil foi virando o pescoço para acompanhá-la na sua divinal cadência de ancas largas, de forma a que só saíste do transe quando a noiva tão querida te meteu uma bolsada na cara de pau que antes tu tinhas e hoje já não tens. Eu vi tudo. Dito e feito, ela te pegou pelo braço, sacudiu com alguma violência e saiu puxando, como fazem as mães com as crianças arteiras quando são flagradas em delito mínimo. Foste para a casa dela, onde fazias pousada aos finais de semana, de táxi, tendo o teu automóvel ficado na praça em frente ao clube da avenida principal. Lá chegando, foste direto para o ninho do amor. Ela sacou as roupas e pulou em cima de ti. Pegou-te pelos pulsos e disse então:

- Dá próxima vez, jogo em você um copo de cerveja na cara, dou-lhe uma bofetada e termino o noivado. – Disso eu também lembro.

Em êxtase apalermada, conseguiste dormir talvez em vista do fato de a latitude e a longitude estarem estrábicas. Tendo acordado às onze, foste em busca do corcel 2 de nome Anastácio. A noiva ficara a tomar sol. Chegaste ao meio dia. O almoço foi à tripa forra, uma vez que a quase sogra era excepcional nas artes culinárias. Mais tarde, enquanto ela dormia a sesta a sono solto, apanhaste uns paninhos de bunda, digamos assim, e voltaste para debaixo da saia de mamãe, na cadeia velha, com medo do deslize que poderia ocorrer em outros aniversários, como tornou a se repetir um ano depois, agora, já em outra companhia... Ah, moleque!

Pense bem. Até eu ficaria com medo da peia, ó anjo rotundo! Afinal, apanhar em sociedade deve ser feio inclusive aos olhos dos circundantes.

Certo é que te arrependeste muito por fazer-te acreditar por uma moça que só queria o bem a você, ó pústula!

Um dia, então, houveram por bem te arranjar um bom casamento, no dizer da tua mamãe, que fazia promessas ao padroeiro de Xapuri para que tu saísses de casa, logo, e bem casado aos trinta e lá vai pancada.

O que não deveria ser feito foi feito à luz da lua debaixo de chuva fininha sob umas árvores cintilantes. Apanhados já ao término do acasalamento, o plano de fuga falhou. Como eras barnabé federal, foste prontamente denunciado a uma matrona que mandava em meio Acre. A esta respeitável sinhádisseste que casarias em quinze dias, isto, porque ela prometera arruinar a carreira profissional que nunca foi essas coisas todas, apesar dos bons salários. O casório ocorreu na data aprazada. Houve felicidade por dois meses, ao fim dos quais veio a escapada para Belém, em férias por outros dois meses. Maridinho em fuga das responsabilidades, de lá um telefonema dizendo ser impossível alguma coisa mais séria, posto que ela tinha apenas dezesseis anos. Ah, calhorda!

Tudo se acabou e o arrependimento ainda hoje te corrói as tripas. Agiste em prejuízo de uma família muito decente.

Ô poeta do absurdo! Pior é, agora por último, você pensar em vir para o céu, apesar dos crimes tardios e das noites ao anteparo de camas soturnas em motéis de última categoria.

Em verdade, logo na chegada ao céu, já no átrio, bem próximo às cortinas de nuvem amarela, hás de te deparar com Vieira, o padre, portando um estandarte, em tua recepção, onde lerás algo parecido com o que um dia eu te disse. Lembras? Se um homem está verdadeiramente arrependido, se reconhece verdadeira e profundamente as suas culpas, nunca ninguém falará dele tão mal que ele não se julgue por muito pior.

É mesmo assim. Contraditoriamente, do lado do mundo dos prazeres mais divinais, muitos são os que se arrependem por não terem cometido os deslizes mais humanos possíveis, tão doces e tão abomináveis ao mesmo tempo.

Vive tu, então, os encantos do teu mundo eternamente inesperado, vadio, pecaminoso, enquanto eu por cá vou vivendo este marasmo e essa pasmaceira que é estar sempre em atitude relax...

Venceste. Parabéns, ó anjo vagabundo! Also sprach Zarathustra.

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*José Cláudio Mota Porfiro é um cronista desatrelado: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br.

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