domingo, 7 de julho de 2013

Bem pobre, bem feliz...

JOSÉ CLÁUDIO MOTA PORFIRO

Observei há muito tempo, ainda lá em Xapuri, que algumas pessoas, apesar de pobres, se fazem passar por pedantes, arrogantes, orgulhosas, talvez, dos andrajos espirituais nos quais a alma encolhida se veste. Então, fui mais além e vi que delas a pobreza não gosta, isto porque ser pedante é marca registrada dos ricos. Os mais humildes têm mesmo é a obrigação de ser bem simples, do jeito que é a nossa alma sem fantasias. Bem pobre, bem feliz... Vejam só!

Lá havia uma certa elite endinheirada e feliz, talvez. Os nossos comerciantes trocavam borracha e castanha por tecidos ordinários, lamparinas venenosas e miçangas fedidas. Os seringalistas exploradores e perdulários davam as cartas em mesas de baralho nas quais o meu pai, às vezes, era o crupiê. Alguns poucos moravam em residências de alvenaria e bem pintadas, mas a superior maioria vivia mesmo em casas de madeira, algumas bem simples, outras quase choupanas e umas tantas com telhado português, teto bem trabalhado, beirais bordados, varandas com plantas bem cuidadas por empregadas domésticas que ganhavam uma mixaria, mas engordavam, porque comiam bem ou se saciavam apenas com os restos que caíam das mesas dos abastados. Já era alguma coisa para aquela moça que saíra do seringal para tentar a sorte na cidade sem ter que cair nas graças e nas camas dos patrões que lhes faziam filhos insólitos e desavisados.

A empregada de uma família que votava no PTB, partido do Guilherme Zaire e do Oscar Passos, do alto do jirau em que lavava louças, cantava assim:

Quando eles veem um qualquer do PTB

É logo esturrando, querendo até morder

Levantam a saia que é pra todo mundo vê

Que a bandeirola é do tal do PTB. (...)

Em resposta, a empregada da família vizinha, que lavava roupas ao redor de um camburão, cantarolava:

Senhor José da Cobra dê cobro à sua gente

Tranque bem a porta e ponha uma corrente

Porque doido na rua é pra fazer besteira

Oscar Passo olha o braço PSD é o maior.

E fui assim eu crescendo e aumentando o tamanho do quengo que cabia de tudo um pouco, e ainda lá enfiavam a Matemática, ensinada pelo João Garrinha, e o Português, ministrado pela Euri Figueiredo, além de outras que muito me serviram pela vida afora.

Em casa, uma moça que viera do seringal para estudar, cantava umas modas humildes do Teixeirinha, dentre as quais se destacava o Coração de Luto,que logo depois virou filme assistido por nove entre dez brasileiros de norte a sul, posto que o autor gaúcho era admirado nos seringais do Acre:

O maior golpe do mundo que eu tive na minha vida

Foi quando aos sete anos perdi minha mãe querida

Morreu queimada no fogo morte triste dolorida

Que fez a minha mãezinha dar o adeus da despedida.

Vinha vindo da escola quando de longe avistei

E o rancho em que nós morava cheio de gente encontrei

E antes que alguém me dissesse eu logo imaginei

Que o causo era de morte da mãezinha que amei (...)

Veja só como são as coisas, senhora Virgínia Célia...

Num desses dias luminosos, na quadra de esportes recentemente inaugurada, era a hora de as moças jogarem voleibol, uma vez que os rapazes jogariam futebol de salão à noite. Uma delas então disse a mim que alguns dentre os nossos, como eu, aproveitavam e participavam dos dois momentos, ao que eu tasquei:

- E por acaso vocês, moças, teriam número suficiente para compor dois times de voleibol?

 Ao que ela respondeu:

- Olha aí? Só quer ser. Todo falando difícil.

- Ora bolas! Eu sou dado às leituras. Você, não. E não só falo assim, mas escrevo. Você é que não me conhece, apesar de a sua mãe ser minha professora. – Foi esta a resposta enfática como jamais me houvera ocorrido.

Hoje, o fato me faz lembrar um aforismo espanhol segundo o qual nós nos acostumamos a aplaudir as tolices de um rico enquanto nunca damos ouvidos às máximas de um pobre... Não que eu mereça qualquer deferência por parte de quem quer que seja.

Em realidade, o Zé Cláudio era um adolescente caladão e dificilmente ouvido, talvez por ser um tanto desconfiado e sisudo, ou menos belo que os demais da claque que revirava os olhos ante a beleza das moças xapurienses da minha época.

Um dia, de mim vi a minha parca literatura nascendo em berço de ouro, na Xapuri do início dos anos setenta. Pari-a com algum esforço, como em todos os partos. Não lhe dei nome logo, mas, segundo parece-me, se a verdade não me engana e a realidade não me mente, depois, chamei-a Cobra Honorato, o livro infantil do Raul Bopp. Em pouco tempo, ela passou a se chamar O meu pé de Laranja Lima, do José Mauro de Vasconcelos. E foi assim... A cada ano ela levava uns cinco ou seis nomes e hoje o nome dela é A menina que roubava livros, do escritor alemão Markus Zusak

Falo-vos, minhas senhoras, do tempo não perdido, mas buscado, achado e encontrado na pequena biblioteca do meu Colégio Divina Providência...

É que lá em casa havia umas crianças muito arteiras e, a partir das dez da manhã, já plenamente acordadas, faziam um barulho ensurdecedor. Eram assim os meus irmãos mais novos. Dos cacetes.

Como as tarefas escolares eram feitas entre seis e dez horas, eu empreendia fuga rumo ao colégio das freiras, onde estudava à tarde. Lá chegando, a Irmã Alfreda Patrini, ou a Raquel Manfredini, ou a Regina Molinetti, muito solícitas, me deixavam adentrar o recinto de uma pequena biblioteca de mais ou menos sessenta metros quadrados.

Comecei admirando a enciclopédia Mirador Internacional que logo se tornou enjoativa nos seus dezoito tomos muito bem ilustrados. Depois, passeei por José de Alencar, Machado de Assis, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Rachel de Queirós, Castro Alves, Gonçalves Dias, dentre outros menos cotados. Um dia, então, depois de uns três anos, percebi que já nada ali era interessante, não porque eu houvesse lido tudo, mas porque fora do Colégio eu descobrira as viagens pornográficas contidas nos livros da Adelaide Carraro e da Cassandra Rios, uma bênção de Deus na vida de um moleque já cheio de espinhas e libidinagens... Ora vá! É influência de menos e literatura demais para quem não tinha o tostão com que adquirir as obras. Em verdade, emprestava-as de um outro sacana.

Cheguei por fim a uma conclusão estupenda. É que ainda sou um menino bem pobre, bem feliz. Por isto, serei eternamente grato ao destino por ter-me feito nascer sem arrimo. Essa genial pobreza foi a mim uma amiga benfazeja. Ela me ensinou o preço verdadeiro dos bens úteis à vida, que sem ela não teria conhecido. Quando ela me fez evitar o peso do luxo, me fez devoto da arte e da beleza.

Pranteia essa valsa, meu bom Vinícius de Moraes!

__________

*Cronista nascido e criado em Xapuri do Acre a partir de 1957.

Nenhum comentário: