terça-feira, 8 de junho de 2010

De aliança com o destino

José Cláudio Mota Porfiro

Apanho-me a observar algumas plantas ornamentais da Praça do Relógio. Estou sentado a um banco, talvez em êxtase, em vista das belezas naturais desta cidade em flor. E quantas e tão belas flores! Logo eu, ranzinza desde a mais tenra infância, cortando o vento feito coisa doida em cima do alazão pelas estradas do Baturité!

Encanto-me com a barulheira de tantos pássaros que pululam e voejam através dos galhos das frondosas e vetustas mangueiras que ornamentam a cidade de Belém. Há poesia no ar diáfano que envolve esta alma quase pura. Vejo a suntuosidade clássica européia das velhas enciclopédias nos traços que compõem o casario de azulejos portugueses do Boulevard, as velhas igrejas da Sé e a de Santo Alexandre, o Teatro da Paz, as estátuas da Praça da República, dentre outros tantos marcos culturais. Sinto que me envolve o doce cheiro de qualquer doce que me invade as narinas. Vivo os dias que me separam de um matrimônio que, juramos, há de durar para sempre, como este imenso caudal formado pela gigantesca foz do Amazonas. Disseram-me, na Faculdade, que estou sentimental demais.

De fato, mal dados os primeiros passos, mesmo antes do noivado, já me sinto profundamente comprometido com tantas palavras cheias de esperança que houve por bem dizer à dama que cruzou o meu caminho em hora tão propícia. Domenico Cieri, napolitano, nas suas Meditações, leva-nos a concluir que uma das surpresas mais agradáveis que podemos experimentar ao nos comprometermos totalmente com algum projeto específico, como o casamento, é que vão sempre surgindo forças e oportunidades que não houvéramos imaginado até então. Por isto o barco singra cada vez mais veloz através das águas claras e mansas deste festim celestial hoje por mim vivido. Não é tão bom ser feliz sozinho. Até já o fui. Bom mesmo é compartilhar a felicidade com a alma gêmea que se nos colocam em meio ao caminho. É meloso, sim, mas as paixões regadas pelo amor são assim mesmo.

A melhor roupa já não é a da solenidade de Sete de Setembro. Encomendei ao alfaiate Osvaldo Tertuliano um terno de brim HJ bege para ir ao Cinema Olímpia. Cinco dias apenas e já o apanhei passado e engomado. Houvera apressado o especialista em vestuário masculino ao máximo. Oferecera-lhe uma frasqueira de um vinho do Porto, o São Gustavo, já entregue.

Trinta minutos antes da hora aprazada, cá já estou eu, todo ancho, dentro do terno HJ, comendo pipoca, tomando sorvete, bebendo água, esbaforido, nervoso, com o coração aos pulos feito cabrito na várzea. Não estou cabendo em mim de tanta ansiedade. Sinto-me como se estivesse entalado dentro da roupa. Jamais experimentei uma sensação assim, tão pulsante, tão febril.

De repente, não mais que de repente, duas esquinas depois do cinema, no rumo de cima, aparecem as duas de braços dados e sob uma única sombrinha a lhes proteger do sol ainda cálido. Maida, a irmã, vem vestida de um rosa claro, mas completamente desinchavida e desinteressante. A musa dos meus sonhos, Latifa, sorridente mas altiva, desce a ladeirinha, de lá pra cá, de sapato de salto branco, vestido da mesma cor, de cambraia bordada, em maquilagem simples mas encantadora. Duas petecas de olhos pretos e dóceis. Os cabelos negros e lisos, agora um pouco cortados, não passam dos ombros cobertos pelas mangas curtas da vestimenta.

- Olá! Boa tarde! Ninguém poderá dizer que não somos pontuais. – Foi o que me veio à cabeça, posto que as pernas estavam bambas e o coração feito cavalo doido.

- Oi! Esta é minha irmã Maida, de quem já lhe falei. Ela é menor de idade, tem apenas dezessete e, por isso, deve assistir à sessão das cinco, ou seja, um pouco mais cedo, em vista das recomendações de nossa mãe.

- É um grande prazer. – Disse automaticamente. – Antecipei-me e já comprei as entradas. Não sei se é do agrado, desculpem-me; mas, pensando em provar a mim mesmo que já lhe conheço um pouco dos gostos, escolhi assistirmos A parada do amor, com o Maurice Chevalier.

- Ótimo! É uma grande idéia. É o Oscar de 1931 e eu ainda não havia assistido... Podemos entrar?

O primeiro estágio não poderia ter sido melhor. Acertei em cheio. Findei por agradar as duas. E agora, penso comigo, será que o filme não vai mostrar muito beija-beija? Talvez fosse um tanto fora de ocasião. Mas, pensando bem, dela, então, daquela diva libanesa, ao menos um beijo, e só um único beijo, já me deixaria felicíssimo... Há de ser o que Deus quiser.

As horas se passaram celeremente. Sequer lembro uma passagem única da trama criada pelo autor da película. Boa parte do tempo, ficamos de mãos dadas sob o olhar inquisidor da irmã menor.

Agora, vamos em passeio pela Praça da República. Olho-a de soslaio.

Quanta beleza cabe numa mulher só! É como se Deus tivesse caprichado muito mais nela do que em todos os seres da face da terra... E isto é paixão ou é amor?

Talvez sejam os dois... E tudo isso é muito bom.

Estou a caminho do paraíso. Sinto-o em todos os odores de todas as esquinas, em todos os instantes do relógio compassado da velha Igreja de Santo Alexandre, em todas as paisagens que vão até os confins de todos os lugares por onde tenho andado, mesmo em sonhos, como esta quimera que os lhos vêem, o coração sente e a alma rejubilada se entontece, sim, esta faixa azulada longínqua que dizem ser a entrada para a grande hiléia amazônica. Em verdade, é preciso dar razão ao poeta velho que prega para todos os rincões da terra que os brutos também amam.

Em sonho noturno depois de dois copos de vinho, contemplo, da janela do meu quarto, um estranho cenário: a água lenta, a floresta compacta, ilhas em distâncias regulares umas das outras. Olho longamente a paisagem a apagar-se no crepúsculo. Diante dos meus olhos, diante do meu inquieto espírito, dilui-se na sombra, afoga-se na noite, a paisagem patética. O silêncio - um grave e estranho silêncio - tomou conta do por do sol e do nascer da noite que descia devagarzinho, mansamente, como temendo perturbar o começo do sono da mata e do rio, que iam adormecendo no silêncio. Só havia luzes no céu, e eram estrelas. E a noite dissolvia docemente tudo o que havia de brutal naquela imensidão da natureza. A minha alma angustiada aconchegava-se na escuridão que tomou conta de tudo. O silêncio noturno - o delicado e solene silêncio - era uma música, a música da natureza, música da água, do vento, das árvores adormecidas, que me enchiam a alma de uma singular emoção. E, detendo-me calado diante daquela perturbadora fusão de silêncio e escuridão que era a magia da noite amazônica, despertei quando já era sábado, mais um dia para viver a sofreguidão de uma espera quase eterna.

Está combinado. Depois de amanhã, iremos à Missa das sete da noite, na Catedral da Sé. Por enquanto, vou ficando entre os mais doces e os mais pecaminosos pensamentos, olhando o relógio de algibeira a cada cinco minutos, isto, por quarenta e oito horas sem fim.

Estou novamente adiantado em relação ao que acertamos. Incrível é observar que Latifa, apesar da descendência libanesa, freqüenta a Santa Missa todos os domingos, confessa-se junto ao Padre Clemente, comunga, foi batizada e crismada, tudo como manda o figurino da nossa Igreja Católica Apostólica Romana. Nunca a tinha visto antes exatamente pelo fato de fazer o meu exercício religioso em outro horário e, às vezes, em outro templo.

Luvas brancas mais curtas que as primeiras, vestido branco de organza, um olhar a cada dia mais encantador e, agora, a companhia da mãe, a senhora Marreb.

- Este é o senhor Melchíades, de quem já lhe falei, mamãe! Talvez hoje tenhamos alguma coisa a lhe dizer. – Foram estas as palavras que em mim mais causaram surpresa durante toda a vida.

- Boas noites! Estamos já atrasados para um compromisso religioso que tenho. Depois conversamos. – Disse a mãe com sotaque médio asiático bastante carregado.

Ao término da Missa, fomos à residência da família que fica na Rua Padre Eutíquio. Numa sala de visitas elegante, sou convidado a sentar-me. Depois dos salamaleques de praxe, o cafezinho e as broas. Dizemos à senhora Marreb, então, que estamos enamorados, com o que ela concordou, tendo, antes, ficado um tanto irresoluta:

- Talvez também o marido goste de tal namoro porque você já é quase um doutore. Ele gosta dos que estudam e pensam com clareza no futuro.

Fui para casa agradecido a Deus pelo fato de aquela senhora de fartos seios e bundas grandes ter-me achado aproveitável. Afinal, a primeira impressão é a que fica.

De saída, já na porta, roubei-lhe o primeiro beijo, um tanto demorado, é claro, mas sem maiores saliências, afinal, eu, novamente, já quase me sentia parte de uma família, como todo bom cearense perdido nessas idas e vindas deste mundo afora.

Muito do que passava pela minha cabeça, antes, enquanto euforia de rapazola empolgado com possibilidades tão tênues, passa agora a ter significados bastante reais, como algo que se aproxima das verdades mais irrefutáveis. Talvez ela ainda não me ame, mas já gosta de mim, e isto já é muito para um sertanejo atarracado nos procedimentos e quase sem origem, uma vez que não guardo lembrança alguma dos meus pais. Fui criado por duas tias velhas que me deram carinho, vergonha na cara e zelo. E só.

A família Nagib é dona de uma loja de tecidos, roupas e outros badulaques vindos de Paris, a Le Coq. O pai, Radek, está passando temporada em Soures, a cidade da saúde, curando-se de uma grave enfermidade no pulmão, já há seis meses porque, segundo Latifa, teve uma experiência terrível ao escapar de um naufrágio na viagem para Marajó, no meio da reponta. Há um médico amigo, o Dr. Chaves, meu conhecido do gamão do clube Centro Galego, que o visita a cada quinze dias, ocasião em que também as filhas o vêem. O homem, dizem, tem quarenta e nove anos, é forte, e não se sabe como ficou tuberculoso. Certo é que, no meio do naufrágio, quando a maré ainda estava alta e a baía em rebuliço, por erro de um tal Comandante Alencar, o navio Caiçara embicou e onze pessoas morreram afogadas. O turco sobreviveu, mas os pulmões já doentes tiveram de suportar uns bons litros de água. Segundo a família, em mais ou menos um mês, ele já poderá voltar para casa são e salvo, isto tudo por obra e graça das propriedades medicinais de uma água milagrosa (sulfurosa) e do vento saudável que corre do mar e se mistura ao clima temperado e ameno da ilha.

Somos totalmente responsáveis pela qualidade da nossa vida e pelo efeito exercido sobre os outros, construtivo ou destrutivo, quer pelo exemplo quer pela influência direta. Os mais velhos com quem tive o prazer de compartilhar de alguns conselhos, até agora, dizem que a nós, humanos, cabe a busca da felicidade nossa e daqueles a quem amamos. Agindo responsavelmente, como tenho agido desde muito tempo, dou exemplos e, certamente, fortifico uma relação conjugal que já no nascedouro é bastante sólida e convicta, em vista dos nossos propósitos sempre baseados no compromisso e na responsabilidade.

Todos os meus projetos de vida a dois, agora, são plenamente exeqüíveis. Já não vejo dificuldade em comprar uma casa, mobiliá-la, ter um jardim de frente e outro nos fundos de um grande quintal de esquina, seja em São Brás ou no Umarizal, para onde temos projetado o nosso destino a dois e o futuro endereço.

Capítulo XVIII, do romance O Inverno dos Anjos do Sol Poente, do escritor xapuriense José Cláudio Mota Porfiro. Mais no blog do autor, Impressões Gerais.

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