quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O amor, o amor materno e o Direito

Gerivaldo Neiva

Certa vez, há muitos anos, um camponês disse à sua amada: - O que quer que eu faça para provar meu amor por você? A amada, em tom de brincadeira, respondeu: -Se é verdade tua louca paixão, corre e vá buscar de tua mãe o coração. O camponês partiu rapidamente e sua amada não teve tempo de lhe explicar que tudo não passava de uma brincadeira. Cego de paixão, o camponês encontrou a mãe ajoelhada e rezando, mas mesmo assim rasgou-lhe o peito e arrancou-lhe o coração.

No retorno, cantando vitória, o camponês caiu e quebrou uma perna, lançando o coração de sua mãe a uma certa distância. Enquanto agonizava de dor, ouviu uma voz: - "Magoou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me filho, aqui estou, vem buscar-me que ainda sou teu!"

Em resumo, este é o enredo dramático de uma canção de Vicente Celestino que fez muito sucesso nos anos 30, inclusive servindo de inspiração para um filme, em 1951, com o mesmo nome: Coração Materno.[1]

Como se explica racionalmente, se é que sentimentos tão profundos possam ser explicados pela razão, que um homem, para demonstrar seu amor por uma mulher, arranque o coração do peito da própria mãe e este coração, mesmo assim, compadece-se do filho algoz que cai e quebra a perna: - Magoou-se, pobre filho meu?

Ausente a razão, portanto, pode se concluir que não há lugar para interpretações jurídicas desse fato. O direito não alcança a tragédia humana, seja movida pelo ódio ou pelo amor. Para o Direito, resta a interpretação criminológica do fenômeno que resulta em uma conduta típica. O amor, o ódio e a paixão de nada servem para o Direito.

De outro lado, são esses sentimentos que movem a vida das pessoas e o mundo. Sim, o mundo move-se pela força do amor, do ódio e da paixão. Sendo assim, então, por que o Direito não alcança esses sentimentos quando lida com as tragédias humanas? Pode o Direito, ou qualquer outra ciência, interpretar apenas criminologicamente fenômenos perpassados por sentimentos que só a alma humana pode entender? Enfim, que lugar teria para o Direito as razões de um homem que arranca o coração da mãe para provar seu amor e o amor dessa mãe ao perdoar o filho?

Na verdade, o amor é algo que muito se sente e pouco se explica. Utilizando-se da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, o cantor e poeta Renato Russo (Legião Urbana) traduziu muito bem: “O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer. [...]É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor. É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor”.

Na legislação brasileira, o Código Penal prevê a hipótese do perdão do ofendido para os crimes que se procedem mediante Queixa, extinguindo-se a punibilidade, conforme dispõem os artigos 105 e 107, V, do citado diploma legal. A figura do perdão judicial é prevista no artigo 121, §, do Código Penal, apenas para os crimes de homicídio culposo: Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. Assim, por exemplo, o pai que atropela culposamente o próprio filho ao manobrar o carro na garagem pode não sofrer punição, tendo-se em vista a grave consequência de atropelar e matar o próprio filho.

Por fim, utilizando-se do recurso Ctrl+f, busquei na Constituição Brasileira palavras como amor, abraço, amigo, amizade, beijo, beleza, carinho, dedicação, gostar, música, paixão, poesia, saudade, traição etc. Para minha decepção, só encontreiamor em amortização no artigo 234, Que decepção! Por que estas palavras não estão na Constituição? Será que não pode? Sei que não pode: lei é lei e poesia é poesia! Basta!

Prá não dizer que não falei de flores, na legislação brasileira existe hipótese em que a ausência do amor ou a traição são punidos severamente. Aliás, é a única hipótese de pena de morte no Brasil. De fato, o artigo 355, do Código Penal Militar, prevê a pena de morte para o crime de traição à pátria: “Tomar o nacional armas contra o Brasil ou Estado aliado, ou prestar serviço nas forças armadas de nação em guerra contra o Brasil”.

Como se vê, finalmente, estamos muito distantes ainda de construirmos um direito para a vida plena, feliz e abundante. Um Direito que tenha como objetivo proporcionar a felicidade e que tenha a capacidade de entender o amor como o combustível para as relações humanas e das pessoas para com o planeta. Fora disso, a pena de morte continuará em vigor para o crime militar de “traição” e, mesmo que não prevista em lei, para os jovens negros e excluídos das periferias, mortos em tantas chacinas estampadas diariamente nos jornais do país e no choro incontido de suas mães, que lhes perdoarão sempre: - Magoou-se, pobre filho meu?

Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).

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