José Claudio Mota Porfiro
Éramos felizes, sim. A natureza sorria em nossa casa, no jardim, no pomar e através dos rostos pueris e nada preocupados das nossas crianças. Há muito, os ventos benfazejos da bonança habitavam o nosso lar e as nossas vidas cheias de vigor. O trabalho extenuante preenchia todo o meu tempo. De uma forma ou de outra, estava sempre a ajudar na realização dos sonhos mais mirabolantes da minha gente acreana. Ademais, divertíamo-nos muito com o que nos era possível.
Na falta de outro afazer, além da Missa e dos almoços e jantares em nossa residência e nas casas dos amigos, passeávamos de lancha no inverno e no verão, acima e abaixo pelo Rio Acre. Íamos à foz do Riozinho do Rola, de subida, ou à localidade Quixadá, de descida. Outras vezes, íamos à Fazenda Sobral, ou à Fazenda Araripe, andar à cavalo. Fomos ver algumas vezes a Estação Experimental, onde Guiomard Santos implantou uma espécie de laboratório de pesquisa natural para estudo das espécies vegetais da Amazônia, além de observatório para o desenvolvimento de animais de criação. Ocupávamo-nos, sempre, de forma a que a morosidade do tempo não se fizesse tão enfadonha a todos e, principalmente, à Latifa, que também se entretinha com as suas artes manuais que iam desde o tricô e crochê à pintura e à escultura em gesso, este, abundante nos barrancos do Rio Acre. Alguns poetas falariam nas mil maravilhas. Outros, nas mil e uma noites, talvez negras.
Eis, então, que, num dos dias de março de 1952, de chegada para o almoço já preparado por nossa exímia cozinheira, a Dolores, fui informado de que, manhãzinha, Latifa saíra do quarto, fizera os asseios matinais e voltara para a cama sem se alimentar. Mesmo assim, as crianças não deixaram de ir para o Grupo Escolar Sete de Setembro.
Depois do almoço, fui à residência de um jovem médico, Augusto Hidalgo, e o convidei a vir à minha casa auscultar Latifa. De boa temperança e muito solícito, ele não se fez de rogado e já me acompanhou debaixo de um sereno ameaçador de pesada chuva. Em chegando à residência da Floriano Peixoto, encontramo-la embaixo de cobertores, febril, em suores e muito pálida. Depois das providências de praxe, fui aconselhado a levá-la para a Santa Casa de Misericórdia, ali perto. Não havia sequer um carro ou charrete disponível e nós - eu e Seu Zé Cardoso, o carpinteiro marceneiro - a transportamos, na base da força bruta, sentada a uma cadeira de balanço tecida em vime.
Cerca de duzentos metros e já estávamos no hospital católico. Lá estava a nos esperar uma médica chamada Laélia Alcântara para trocar ideias com Augusto Hidalgo. Aplicaram em Latifa uns sedativos e ela dormiu por toda a tarde. Receitaram-lhe uns remédios para doenças do fígado e ela melhorou, mas, no fim do oitavo dia, começou a vomitar uns excrementos enegrecidos. Segundo os médicos, ela estava acometida de tiriça preta, ou hepatite viral. No décimo primeiro dia, depois de passar toda a noite anterior à beira do leito, fui à casa da família Farhat, onde as minhas tristes crianças, em dia santo de guarda, estavam sendo tratadas muito bem. Depois, tirei um sono e, ao acordar, aí pelo meio- dia, apareceu-me um enfermeiro de nome Aristarco com a pior notícia da minha vida. Havia falecido a sempre doce e bela Latifa, a musa dos meus sonhos da juventude e também da idade crepuscular, o meu amor maior, mesmo depois de quase meio século. Meu Deus! E os meus filhos?!
Além de lembrar os sogros falecidos, Radek e Marreb, e a cunhada Samira, residente no Rio de Janeiro, nada mais me passou pela cabeça além do que o que poderia vir a ocorrer aos meus filhos. Onde arranjaria coragem para dar-lhes a notícia? Como faria isto? Quem me poderia ajudar naquela hora tão trágica? Não. Nenhum ser humano jamais há de preparar-se para desconforto de tamanha magnitude.
Depois das providências iniciais, fui ter com os préstimos da senhorinha Silvia Maluf Farhat e da professora Maria Angélica de Castro, minhas amigas de um bom tempo. Unidos, fomos os três para junto dos meus filhos. Nada foi tão dilacerador em toda a minha vida. O choro das crianças era cortante. E não nos era possível, enquanto adultos, conter as lágrimas. Mais de hora nós ficamos ao pé delas acalentando-as, em nome de Deus que precisara de Latifa para outras funções mais importantes no céu. Ao que ouvíamos imprecações que lançavam dúvidas em relação ao amor divino...
- Deus pode até gostar de mamãe, mas não gosta de nós!
- É! Esse Deus é muito ruim... Tirar logo a nossa mãezinha!...
Ao que eu disse:
- Deus, esse nosso grande Pai, haverá de nos confortar. Nós ainda seremos muito felizes, apesar da irreparável perda da sua mãe.
Ai de mim, se não fosse, nesse e em outros muitos momentos, o apoio daquela gente acreana tão querida.
***
Logo, Seu Zé Cardoso já havia tomado as medidas do corpo da falecida tão amada e já providenciava a confecção do ataúde em sua oficina, na Base. Só às três da tarde trouxeram o corpo da mulher querida para o velório na nossa casa antes tão feliz. E tudo já estava arrumado, com flores e cadeiras para os visitantes, além de biscoitos, chocolate, café e guaraná. Vieram as autoridades do Território, os amigos da repartição e os parceiros das horas festivas. Vieram muitas crianças da escola próxima frequentada pelos meus filhos. O Bispo Dom Julio Mattioli benzeu o corpo, rezou um terço e o encomendou a Deus. Só depois é que o alvoroço foi maior com a chegada das minhas tristes crianças e com o choro que vinha dos presentes, todos, condoídos da nossa tristeza maior.
Na manhã do dia seguinte, o corpo foi levado para a Catedral de Nossa Senhora de Nazaré, inaugurada recentemente, ali próximo, para uma missa de corpo presente, rezada pelo próprio Bispo, este, uma espécie de soldado de Cristo e um amigo querido da família desde algum tempo.
***
Chega-se ao campo santo, de nome São João Batista, através de uma estradinha que parte da minha rua, dobrando à esquerda, em sentido contrário ao rio, no rumo da Colônia Floresta, defronte ao abrigo das crianças sem berço e sem raiz. A areia úmida do caminho parece ter-se embebido das minhas lágrimas de viúvo maldito. O cortejo silencia a cidade nascente e a tristeza aumenta com os murmúrios de orações em voz abaixo do normal. Os cânticos católicos mais parecem lamúrias sem fim e sem piedade. Os véus negros na cabeça das mulheres aumentam o terrível ar do féretro daquela que vai e só deixa boas lembranças. À beira do sepulcro, discurso e loas são proferidos em homenagem à Latifa. Eu, de minha parte, nada consigo dizer. Estou engasgado e as lágrimas grossas não me deixam quase respirar.
Nada pior que a volta para casa, apesar do ombro amigo de muitos, apesar dos cuidados extremos para com os meus filhos. Também esta noite foi passada em claro. Nos meus braços, as minhas crianças cochilam, mas logo acordam em choro copioso. O amparo vem de Dolores, do Seu Abílio Mendonça e do Seu Zé Cardozo que, durante todo o tempo e até durante toda a noite posterior ao velório estão de pé, ao nosso lado, sempre solícitos e condoídos da minha situação e da dos meus filhinhos. Nunca terei certeza se agradeci como deveria a esses meus ternos amigos. Certo é que, por mais de semana, eles e as famílias turcas, tão apiedados, todos, dão toda a atenção e cuidam muito bem de mim e dos meus filhos.
Em verdade, esses são tempos de provação. Mas Deus é misericordioso e a grande perda seguirá sendo aliviada, paulatinamente, com o passar dos anos.
Prova inconteste de todo o amor e de toda a dor foi uma espécie de flâmula que encontrei entre os pertences da esposa morta. Um poema de Florbela Espanca, a poetisa portuguesa, havia sido bordado em belas letras estilo clássico. Era Renúncia, do Livro de Sóror Saudade:
A minha mocidade há muito pus
No tranquilo convento da tristeza,
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...
Lá fora, a Noite, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
E como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio de luz...
Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!
Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra
Ó minha mocidade toda em flor!
Por que teria Latifa me presenteado com tanto simbolismo?
***
Samira, a cunhada, desembarcou no Aeroporto de Rio Branco três semanas depois da morte de Latifa, comunicada que foi por telegrama. A chegada foi um recrudescimento da dor. Mais lágrimas e mais pesares. Quanta tristeza junta.
Mais não havia a discutir. A razão turca falava mais alto que as minhas emoções à flor da pele. As crianças já estavam em fase de conclusão do ensino primário. Não havia como continuar os estudos como nós gostaríamos. No Rio de Janeiro, os tios e mais uns amigos, todos residentes no Bairro da Urca, cuidariam dos meus filhos melhor que eu enquanto durar a minha experiência no Acre.
Novas consternações e novas lágrimas já cansadas de tanta desdita. Em vinte dias, com todos os documentos prontos, inclusive os escolares, vi meus filhos tomarem um avião para se fixarem no Rio de Janeiro.
Hoje, ainda sigo melhorando das dores da saudade. Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também, um prazer suave, íntimo, consolador.
Divago muito, mastigando a solidão, e concluo que muitas vezes pensamos que as infelicidades são constantes, notadamente, nesses momentos em que apenas sentimos desânimo.
Ora! É preciso ir sempre em frente. Esta é a lógica mais pura na relação entre Deus e o humano. Caminhamos por essas estradas de seringa da vida até que o texto que é a nossa vida tenha, enfim, um parágrafo chamado conclusão e, depois, um ponto final, o nada, a morte.
Mas, pensando bem melhor, depois de sobreviver por tantas décadas, vejo agora que a morte não pode ser pensada, pois é ausência de pensamento. Mais certo é viver como se fôssemos eternos. Como todo sertanejo calejado pelas asperezas da vida, eu também sou um forte. Vou em frente! A vida continua. Deus é pai e não é padrasto.
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