Leila Jalul
Via Blog do Altino.
Dia 25 último, entre amigos, taças de cerveja e caviar, completei meus exatos 64 anos de vida. Vida plena de baixos e altos, depressões e loucuras. Vida. Muita vida.
Olhando o tempo que passou, o tanto que vivi, que sorri e que chorei, voltei-me para “apreciar” o fenômeno da cheia que acontece no Rio Acre, de vez em sempre. Não fico chocada com as coisas que o rio faz. Fico chocada, sim, com o que fizeram com ele.
E fui lembrando, lembrando, era pequena, e era lindo este mesmo rio que ainda insiste cortar minha cidade. Quem viveu antes de mim, por certo há de lembrar, era mais lindo ainda. Deslizando por seu leito, médias e pequenas embarcações traziam gente e coisas de comer. Gente de longe, de muito longe, até...
Era pequena, sim, mas na minha retina ainda persiste a velha imagem da cidade iluminada sobre suas águas. Velhos e novos batelões, chatas e navios mostravam a vida em seu curso. Era festa na cidade a chegada dos navios. Na singeleza das nossas ambições, tudo era festa.
Na avidez da minha gulodice, cada navio aportado significava comida e fartura. Azeitonas pretas, biscoitos confeitados, manteiga, trigo e outros produtos que abasteciam a loja do meu avô e de outros tantos comerciantes da minha cidade. O rio era o condutor do futuro.
Lembro, apesar de tão menina à época, o quanto de terra firme existia diante da casa onde nasci. Havia um complexo hospitalar mantido por uma entidade religiosa. Havia mais terra atrás e muito distante, até que se avistasse o rio. Dos seus barrancos retirei gesso para o fabrico dos meus artesanatos.
Havia o Bita. Um Dr. Davi Friale sem diploma. E ele dizia do fim do rio com mais exatidão que as previsões atuais. Havia mata onde surgiu o bairro Cidade Nova. Havia praias, diversão, festas, tartarugas e tracajás poedeiras. Havia vida.
Um dia, após o primeiro desbarrancamento na Floriano Peixoto, escutei numa reunião de família, que a cidade iria para o brejo. Uma equipe de geólogos contratada pelo governo do antigo Território do Acre, deu o veredito: o leito do Rio Acre iria mudar ao longo dos anos. Não disseram quantos. E fiquei assombrada. Segundo o tal laudo, fosse como fosse, desapareceriam a catedral, o Palácio Rio Branco, sede do governo, e tudo o mais que encontrasse pela frente.
Uma “castrátofe”, como dizia minha avó. E de noite, ao colocar a cabeça no travesseiro, qualquer barulho que viesse da rua aterrada por mais de metro e meio de barro, ficava cagada de medo. É agora, José?
O tempo foi passando, passando e o desbarrancamento continuou. Foi-se o “Papouco”, o Preventório, a Minas Gerais e a Rio Grande do Sul.
Voltando ao laudo técnico, o da desgraceira, o governo deveria criar políticas de subir “pra cima”. Em outras palavras: transferir o centro administrativo lá para o lado do bairro das Placas, Apolônio Sales, Juarez Távora e mais e mais, sempre no rumo de cima, evidentemente.
É tradição, nas cidades não planejadas, a aglomeração em torno das repartições públicas e dos mercados. Não é segredo que o Acre é teúdo e manteúdo do governo central, desde que o diabo se chamava Lúcifer. Ora, pois.
Apesar dos laudos e do transcorrer dos meus tempos, o tinhoso RIO ACRE (maiúsculo, por respeito), encheu, vazou, vazou e encheu muitas vezes.
Agora, em meio à tragédia deste ano, relembro.
O ano, salvo engano, foi 1987. O mês foi fevereiro. No torrencial inverno, e ponham torrencial nisso, a capital Rio Branco e outras cidades do Acre foram invadidas pelas águas. Tanto quanto agora, em 2012, o clamor dos alagados ecoou.
O governo estadual pediu dinheiro e foi ouvido. De Brasília, nesta alagação de agora, uma pequena merreca foi autorizada (e ainda não liberada). O dinheiro é tanto que não cobre o que foi engolido pelas águas em dois ou três bairros. É muita lama e sofrimento para pouco dinheiro. Isso tudo, atente-se, sem contar as misérias pessoais. Uma criança que morre, um voluntário de 19 anos eletrocutado e as doenças que as águas trarão a curto e médio prazos.
Em 1987, do governo brasileiro chegou um montante que, de longe, também não cobriu um terço do prejuízo. Sempre foi assim. Outros governos, entretanto, ficaram comovidos com a tragédia traduzida em imagens. E veio de Cuba, um país que sabe de tragédias – políticas e naturais -, uma importante e possível contribuição: medicamentos e equipamentos hospitalares. De outros países vieram alimentos enlatados: queijos holandeses, atum sueco, leite em pó da Inglaterra, colchões, roupas de cama e muitas, muitas outras doações, incluindo geradores a diesel. Do exterior e de outros estados brasileiros. Além da conta aberta para recebimento de doações em dinheiro, claro!
As águas foram baixando. Antes que isso acontecesse, entretanto, o filé das doações já estava nas mãos dos ratos políticos que gerenciavam a calamidade. Geradores de energia a diesel, colchões e outros donativos foram armazenados nas fazendas de vereadores e deputados estaduais. Eles não perderam tempo. 1988 seria ano de eleições.
Eu mesma, na minha casa, recebi de uma parenta de um deputado de Tarauacá, umas latas de queijos vindas da Europa. Devolvi. Não tinha porque aceitá-las. Dei a maior escrachada na doadora e devolvi. Minha mãe, através de uma pessoa ligada à família de um genro, ganhou de presente um jogo de pinças, bisturis e tesouras cirúrgicas doadas por Cuba. Fiz mamãe devolver. Quis armar um escândalo e denunciar. Denunciar para quem? Os ratos estavam no poder. Denunciar? Como?
Em 1988, no ardor da campanha, colchões, roupas, queijos e outros alimentos vencidos foram distribuídos a rodo. Os alagados, bem antes das eleições, reergueram suas casas e trataram de recomeçar suas vidas à custa de suas coragens. Não se sabe, até hoje, notícias de inquéritos e punições. Os ratos são fortes. São frios. Dos limões das tragédias humanas eles fazem suas próprias e doces limonadas. E vivem rindo, à espera de outras enchentes que, felizmente, não são anuais. No período de poucas águas eles se confortam com qualquer coisa, principalmente nos anos eleitorais, onde se fazem presentes em enterros e lutos dos que sempre enganaram. São verdadeiros Farofinos na arte de encantar incautos.
Ratos são ratos. Ladrões de vidas e roedores da decência. Não creio que hoje eles existam como em 1987. Ratos amorais, talvez. Há quem se aproveite das circunstâncias, mesmo sem ser convidado.
O povo acreano é forte e sempre conviveu com adversidades políticas e climáticas. O rio, por sua vez, quer ter vida própria. Às vezes míngua e vira filete e poças d’água. Às vezes se vinga e transborda. O rio não sabe dos ratos. E corre livre, apesar deles. Infelizmente, inocentes úteis vão da carona na sua ira. Talvez para que fiquem na espreita e se alertem, antes das próximas eleições.
Leila Jalul é cronista acreana.
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