quinta-feira, 15 de abril de 2010

Amazônia dos Brabos



Comecei ontem a ler o romance Amazônia dos Brabos, do jornalista Archibaldo Antunes. Escrito, em 2001, o livro conta a história do cearense João Gabriel de Carvalho e Mello, que passou mais de vinte anos dentro do seringal Tauariá, no Amazonas, antes de regressar a Uruburetama (CE), sua terra natal.

A seca de 1877 mandaria João Gabriel de volta à floresta, dessa vez mais longe do Amazonas, para fundar o seringal Anajás, em 88. As terras pertenciam à Bolívia. No rastro de João Gabriel, vieram outros e mais outros, que deram origem ao bravo povo acreano e desencadearam os conflitos armados contra os bolivianos.

A história, diz Antunes, é entremeada por episódios que trouxeram para cá Luiz Galvez e empurraram Plácido de Castro para a guerra contra a Bolívia. É claro que romanceei uns fatos, assim como me mantive fiel a outros. Abaixo, um trecho do livro que narra o casamento de João Gabriel com Mariana Felício do Rego:

"O casamento se deu na igreja da cidade e a festa reuniu duas dezenas de amigos e parentes das partes. Os músicos de Cardoso vieram animar o fandango, que entrou pela noite e terminou com um filho de Filó Genésia dormindo no galinheiro e dois cachorros fuçando nos restos de comida. No mesmo dia da cerimônia Mariana mudou-se para casa que tinha sido dos pais do noivo, ganhando deste um vestido novo de chita – não para vestir, como lhe disse um João Gabriel prenhe de felicidade e olhos faiscantes, mas tão-somente para tirar.

Viveram em idílio as primeiras semanas do matrimônio, que foram também as semanas de estio. As sementes de feijão lançadas na terra não vingaram, e o casal viu, entre enamorado e apreensivo, algumas levas de retirantes famélicos a trinta passos da janela, na estrada de pó. Eram apenas contornos de gente, esbatidos de sol, as carnes comidas pela fome e o rosto poento revelando a miséria a que estavam condenados. Uns vinham lhes bater à porta, gestos humildes e voz sumida, a pedir água pelo amor de Deus. Também tinham fome aquelas criaturas martirizadas pela desgraça. Mas o máximo que os recém-casados podiam lhes dar de comer era uma cuia de farinha e um pedaço de rapadura. Às vezes nem isso.

Essas cenas de horror atrapalhavam a disposição de Mariana para o amor de todas as noites, um amor feito com tanto desejo que fazia balançar como febre as vigas do teto. Nos dias, porém, em que eles avistavam uma turba de retirantes, João Gabriel sabia que a noite na cama de varas seria apenas de mornidão.

No primeiro ano da seca eles se agüentaram com o resto da colheita feita nos meses que antecederam o estio. Mas o martírio crescia na desproporção das plantas que minguavam ao castigo do sol. A terra rachava. Os dias faiscavam, insuportáveis de tanta luz e calor.

O curral que levantara com a ajuda de Mariana continuava vazio, já que não puderam contar com o dinheiro da plantação de milho e arroz para comprar as novilhas. Quando soube pela mulher que ela esperava um filho seu, lastimou não ter no cercado ao menos uma rês que garantisse ao rebento temporão um punhado de leite.

Enquanto sulcava a terra para o plantio de novas sementes de milho e arroz, sementes que provavelmente se perderiam no mormaço dos dias, o sertanejo lamentava que a chegada do filho fosse de precisão como a deles, que já quase viviam sob as graças do acaso. E foi por isso que decidiu ir ao tio da mulher propor-lhe um negócio. Nada pediria ao homem não fosse a emergência da situação."

Obs. Archibaldo Antunes desenvolveu tamanha admiração pelo desbravador acreano que fez duas homenagens a ele. A primeira foi recontar sua história. A segunda foi batizar o filho, que hoje tem quatro anos e nove meses, de João Gabriel.

2 comentários:

Archibaldo Antunes disse...

Querido Raimari, a alegria de saber que você está lendo meu livro é equivalente à vergonha de lembrar que me comprometera a enviar-lhe um exemplar pelo Badaró. Como não o encontrei, o assunto foi sendo relegado - mas nunca esquecido.
Agradeço pela deferência e pela citação em seu blog. Também estimo que você o Wanderley Viana tenham chegado a um entendimento. Como fiz parte dessa história, sei o quanto erramos uns com os outros, e acrescento a de vocês a minha parcela de penitência.
Wanderley é uma boa pessoa, e não fosse o problema do qual tenta se recuperar - e oxalá tenha sucesso -, e algumas víboras que dia após dia inoculavam-lhe o veneno da discórdia, teria feito um governo decente em Xapuri. Da mesma forma, aprendi a ter respeito e, acredite, até um grande carinho por você. O tempo e a convivência nos ensinam muitas coisas. Nem sempre, como você mesmo já disse, as pessoas que estão ao nosso redor fingindo amizade são aquelas que nos querem bem. A você desejo tudo de melhor que a vida pode proporcionar.
Mais uma vez obrigado pela citação ao romance, que é uma forma - desproporcional, eu sei - de compensar os acreanos por tudo que já recebi nesta terra que tento amo.
Forte abraço.

Clenes Guerreiro disse...

Em períodos de trabalho no Museu do Xapury, em pesquisas de montagem para o Grupo de Teatro Poronga e no projeto/blog História Multimídia de Xapuri, tive a oportunidade de ler livros interessantíssimos que tinham como foco a nossa história (acreana, seringueira, de exploração e luta) e um dos livros que tive acesso e recomendo é 'Amazônia dos Brabos'.
O interessante é que essas leituras poucos são recomendadas com tamanha veemência nos meios de comunicação. Até estranhei, mas certamente é recomendável e que se torne um hábito divulgar tamanha cultura!
Abraço.