segunda-feira, 2 de março de 2015

SANS–CULOTTES E SEM COLETES

heróis anônimos das alagações em Xapuri

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Sérgio Souza

Convém, inicialmente, explicar que o termo Sans-culottes era utilizado durante a Revolução Francesa, ocorrida no final do século XVIII, para designar trabalhadores e pequenos proprietários que contestavam o poder dos aristocratas. A denominação era uma maneira de a nobreza caracterizá-los como plebeus, já que “culottes”, no período, constituía-se em uma peça do guarda roupa nobre. Era, basicamente, uma espécie de calção, com elásticos próximos aos joelhos. No lugar de utilizar a citada peça, os pobres do período usavam calças retas, feitas de algodão.

Neste pequeno texto, que terá como referência cronológica o período em que as águas do rio Acre inundaram Xapuri, nossos plebeus contemporâneos também serão caracterizados pela ausência de uma peça em seus vestuários, no caso, os coletes, vistosos coletes utilizados por alguns agentes públicos. Por esse motivo, serão denominados como “sem coletes”.

Antes, no entanto, penso ser importante ressaltar a maneira como o movimento das águas causou surpresas e espantos em Xapuri. Sempre acreditei que telefonemas, por si, são capazes de gerar certa incredulidade. Afinal, o fato de amar incondicionalmente minha mãe, parecia-me não ser suficiente para reproduzir a informação que a casa das minhas Tias Déa e Euri, em Xapuri, iriam ser tomadas pelas águas do rio Acre. Foi preciso ver pra crer.

Mochila preparada, carona devidamente organizada, parti para Xapuri na companhia de minha prima Fátima Figueiredo. Duas horas depois chegávamos à cidade, ou o que restava dela. Sem muitas delongas, fomos de imediato à Rua Floriano Peixoto, espécie de cais improvisado para as pequenas embarcações que traziam mudanças de pessoas atingidas por essa tragédia produzida, fundamentalmente, pela ganância humana e a efetiva falta de políticas públicas, capazes de proteger as florestas, principalmente as localizadas as margens dos rios.

Um fato, no entanto, saltou-me aos olhos de imediato. No trajeto que fazia, junto com amigos e parentes, em direção a casa alagada de minha tia Euri, percebi que os que estavam em meio às águas, demonstrando solidariedade, ajudando com a retirada de móveis e utensílios domésticos, não estavam vinculados a nenhum órgão governamental, faziam de forma espontânea, sem se importar se seus rostos iriam se estampados nas primeiras páginas dos jornais. Tampouco precisavam forçar um semblante contrito, pelo contrário, conversavam e, em alguns casos, aliviavam o peso do trabalho e o frio, ocasionado pela presença prolongada nas águas gélidas, com generosos goles de aguardente.

Por outro lado, observei a existência de outro grupo. Seus membros usavam vistosos coletes, mas, poucos deles demonstravam disposição para entrar nas águas e ajudar quem perdia o pouco que tinha. Estes pareciam exercer funções gerenciais. Não foi difícil identificá-los, tratava-se de agentes públicos, vinculados ao Governo do Estado e a Prefeitura Municipal. Não demorou para que passassem a ser chamados de “o pessoal de colete”. O termo foi se tornando pejorativo, quase que sinônimo de malemolência. Notava-se, no entanto, a preocupação de alguns do grupo em registrar tudo que se passava, principalmente se alguma autoridade aproximava-se dos locais alagados. Câmera na mão a procura do melhor ângulo, sorriso disfarçado, aperto de mão em algum transeunte e pronto, “olha o passarinho”!

Também impossível passar despercebido os caminhões do Exército Brasileiro que, segundo as “línguas de plantão”, rodavam mais que contribuíam. Interessante frisar que para ter acesso a estes veículos e ao decorrente apoio dos militares, precisava solicitar ao capitão, devidamente posicionado no front improvisado, no interior do prédio da Prefeitura. Ressalte-se que não era assim tão fácil conseguir a benevolência do dito. Também não me perguntem se era necessário solicitar o socorro urgente em três vias, e a autorização vir em forma de um “carimbaço”.

Para completar a sanha dos “fariseus”, como se não bastasse mais nada, eis que uma enorme comitiva de reluzentes caminhonetes adentram a caótica cidade. De pisca alerta ligado, os carros chamavam atenção por onde passavam, cheguei a pensar, inclusive, que esta era intenção dos que estavam em seu interior, depois, no entanto, imaginei que a miséria humana não chegaria a tanto, ou chegaria? Pois bem, depois a referida comitiva dirigiu-se ao Colégio Divina Providência, sem que a maioria das pessoas entendesse o que estava acontecendo. Só depois se soube que o ministro da Integração Nacional, acompanhado de um restrito círculo de “autoridades”, viera verificar a situação, e assim o fizera em não mais que cinco minutos. Deixara a promessa de construir casas para os que perderam tudo na alagação, dizem que duzentas no total. Novidade nenhuma, afinal, este é um momento fértil para exageros.

Depois da rápida estadia, espécie de “visita de médico”, para utilizar um termo corriqueiro em Xapuri, saíram da cidade, também enfileirados, da mesma forma chamativa com que entraram. Foram cantar em outra freguesia. Ficaram, no entanto, os sem coletes. Permaneceram dentro da água, ajudando, contribuindo, minimizando a dor. Fazendo tudo sem algazarra, sem tocar os sinos a cada boa ação praticada.

Sérgio Roberto Gomes de Souza é filho da professora Nadir e do João Mucuim. É também historiador e professor da Universidade Federal do Acre.