domingo, 30 de junho de 2013

O lado trágico da distância

CLÁUDIO MOTTA

São homens que vivem ao sabor das águas do grande Rio Amazonas. Cada qual carrega sobre si o peso da distância das famílias. Há mais tragédia que tango, não exatamente como no espetáculo. A viagem por esta vida é longa, se assim tu o mereces.

Entrego-me, então, a alguns minutos de melancolia. É que estive a conversar com Homero, o velho homem do mar. Ao lado deste estava Petrônio Rodrigues, uma espécie de subcomandante do navio. A tristeza se abateu sobre os dois. O primeiro tinha quatro filhas em Belém aos cuidados de uma senhora de nome Alice que tomara conta das meninas, uma vez que a mãe destas morrera. As moças o viam por, no máximo, quinze dias a cada três meses. A mais velha, de dezesseis anos, era estudante adiantada do Colégio de Nazareth. Outras duas também estudavam, mas a mais novinha, de sete anos apenas, sofrera por dois anos de uma febre que dá nas crianças que são afastadas dos entes queridos, principalmente, por motivo de morte da mãe numa idade  -  cinco anos  -  em que sequer o pai pode arranjar outra esposa porque seria pior para todos. Por isto, o Comandante não mais se casou e agora, segundo ele próprio, desistiu de vez porque as meninas não merecem golpe tão duro.

Petrônio passa por drama parecido, mas a esposa sobrevive a uma doença e agora vegeta sobre uma cama de hospital aos cuidados de duas filhas e dois filhos que se revezam na cabaceira da moribunda já há mais de um ano. São problemas do coração aliados a uma letargia crônica que a deixou meio doida sem saber ou querer sequer levantar-se.

Pior de todas, entretanto, é a tragédia do seringueiro Zé Raimundo e sua esposa Isabel que, depois de dez anos no Acre, onde já possuem alguns bens, voltaram ao Ceará à procura de um filho, Raimundo Nonato, de vinte e cinco anos. Dá pena o estado dos dois que souberam ter o filho morrido no campo de concentração de Senador Pompeu.

Segundo Zé Raimundo, um homem razoavelmente esclarecido, os currais do governo  -  como os confinamentos são chamados pelos retirantes  -  surgiram em 1915, instalados no bairro do Alagadiço, em Senador Pompeu. Mais tarde, na seca de 1925, os campos foram ressuscitados como política do governo federal.

Do ponto de vista oficial, esses campos de miséria aparecem como medida de assistência aos flagelados que não têm trabalho nas frentes de serviço. Mas a realidade é outra. Os famintos são atraídos com a promessa de comida, assistência médica e segurança. Lá não encontram a estrutura prometida e não podem sair, sendo mantidos presos. Tudo para evitar que Fortaleza seja invadida por essa gente fedorenta.

Alguns campos, projetados para receber duas mil pessoas, chegam a manter até dezoito mil flagelados de uma só vez. A fome e a insalubridade dos confinamentos levam a milhares de mortes. Os livros de óbitos das igrejas mostram que noventa por cento das mortes registradas acontecem nos campos de concentração. No curral de Ipu, a média é de sete a oito mortes por dia.

O Comandante Homero Melo é desses cearenses que têm conhecimento da dimensão da tragédia e passa a me contar detalhes como se estivesse à frente de um jornalista. Segundo ele, do alto de uma colina esturricada pela seca, no município de Senador Pompeu, sertão do Ceará, está escondido um pedaço da história do Brasil que poucos cearenses gostam de contar. Sentem vergonha.

Erguidos para abrigar operários e engenheiros ingleses que construiriam ali um açude de grande porte, os casarões tornaram-se palco de doença e morte. Durante a impiedosa seca que mais tarde assolou a região, a Vila dos Ingleses sediou um campo de concentração para confinamento de flagelados. O gueto era vigiado por soldados, como em uma guerra. O objetivo era isolar os retirantes e evitar a invasão das grandes cidades pela miséria e por epidemias.

Há alguns meses, visitou o local um enviado do Presidente do Brasil encarregado de recolher provas e testemunhos a respeito do miserê. Missão relativamente simples: a lembrança do cárcere permanece viva na memória dos muitos sobreviventes que lá ainda residem. Segundo eles, a comida era a cera que escorria das velas na esperança de não morrer de fome, pois a maior parte dos víveres ali chegados estava estragada e o pouco que chegava em condições de consumo era roubado pelos guardas.

Ainda segundo o velho homem do mar, a morte era rotina nos chamados currais da fome, criados pelo governo da República sob o disfarce de obra social para distribuir alimento. Ao todo, no ano passado, construíram-se sete quartéis no Ceará e no Piauí, para onde foram levados setenta mil flagelados. A Vila dos Ingleses, em Senador Pompeu, era o maior deles. Das dezessete mil pessoas que passaram por lá, pelo menos cinco mil morreram de fome e doenças. Sob o sol escaldante e sem nenhuma água, milhares de famintos com cabeça raspada, para evitar piolhos, eram obrigados a descarregar o alimento enviado de trem pelo governo. A maior parte chegava estragada e os melhores cortes de carne iam para a cozinha dos militares. Para os retirantes, sobravam somente o sangue, o coração e os bofes dos bois. A sopa era preparada com mato e goma (amido de mandioca). As crianças comiam rapadura e morriam de diarreia. O feijão era tão duro e ruim que ganhou o apelido de Zé Félix, nome do mais truculento guarda do campo de concentração, comenta o Comandante.

À noite, luzes de holofotes vigiavam as vias de acesso e o comportamento dos prisioneiros, amontoados em barracos feitos com gravetos secos e estopas cortadas dos sacos de comida. Alguns guardas deixavam namorar num quartinho escuro, o mesmo usado para açoitar os desobedientes.

- Meu avô era coveiro e guarda do cemitério – comenta o Comandante. - Os doentes não podiam sair do gueto. Rezas, choros e lamúrias cortavam a madrugada, denunciando o desespero dos famintos. Muitos morriam  -  cerca de 20 por dia  -  e os cadáveres eram enterrados às pressas em valas para evitar o ataque de cachorros e urubus.

Para se ter uma ideia do desprezível, a antiga casa de pólvora onde os ingleses guardavam os explosivos usados na construção da Barragem do Patu tornou-se uma espécie de antecâmara da morte, para onde iam os internos em estado de saúde precário. Segundo pessoas da cidade, não se sabe da notícia de alguém que tenha saído dali com vida.

De acordo com as anotações depois tomadas do seringueiro Zé Raimundo, a barragem com a qual seria criado o grande açude para a distribuição de água teve as obras interrompidas por falta de dinheiro.  Hoje, as pragas e as secas estão destruindo tudo em Senador Pompeu, grande produtor de algodão de tempos anteriores.

- Mas a seca atual é pior que a dos primeiros tempos do campo de concentração porque os castigos do céu jogam fora todos os sonhos de um Ceará abundante que nós dificilmente veremos. Por isso, volto pro Acre onde já tenho uma padaria e um pequeno sítio com plantação e algum criame, graças a Deus! – Diz o seringueiro em lágrimas. 

A tristeza é um livro sábio que se tem no coração e que nos diz centenas de coisas. Impede-nos de apodrecer como um cogumelo debaixo de uma árvore. Pouco a pouco vai fabricando uma provisão de ensinamentos para a vida. Todavia, segundo observo pelo exemplo de Senador Pompeu, a humanidade segue se arrastando como a serpente apocalíptica pelos caminhos tortuosos da caatinga, instilando muito veneno aqui e pouco mel acolá...

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José Cláudio Mota Porfiro é cronista xapuriense.

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