sexta-feira, 13 de março de 2020

Pelo direito de sermos plurais: Em defesa da Ufac e do Itaan Arruda

Prof. Dr. Sérgio Roberto Gomes de Souza [1] 

Duas coisas me chamaram atenção nesses últimos dias. Não, não falarei sobre corona vírus, quedas de bolsas ou aumento do dólar. O que me deixou estupefato foi a forma como as redes sociais, parte da imprensa e autoridades públicas reagiram as observações feitas pelo jornalista Itaan Arruda, que criticou a maneira como policiais militares abordaram um grupo de jovens na Universidade Federal do Acre-UFAC, onde leciono há dezoito anos. Na contramão das manifestações e censuras ao jornalista, também me causou surpresa o silencia da administração superior da UFAC, que fechou-se em copas e não emitiu, sequer, uma nota sobre o acontecimento.

O que teria ocorrido de tão grave/importante para ser comentado? Talvez o fato de que, usando como referência o que escreve o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, que “uma história começa por um acontecimento raro, que não está instalado na plenitude da razão”. Esse fragmento de texto foi retirado de escritos de Albuquerque Júnior que analisam como a obra de Franz Kafka pode contribuir para a produção historiográfica. Nesse caso, o acontecimento, que provoca uma ruptura no que podemos compreender como “normalidade”, termina por descerrar a face do ordinário, do rotineiro, do cotidiano, do repetitivo.

Em O Processo, Kafka narra as amarguras de Josef K. que sem nada ter feito foi detido certa manhã, após acordar em uma situação inusitada, considerando o estranho olhar da vizinha e o fato de Ana não ter trazido seu “pequeno almoço”. Qual foi o delito de Josef K.? os policiais que o detiveram não souberam responder. Da mesma forma não era de conhecimento do inspetor de polícia. Josef K. nunca foi informado porque estava sendo processado.

Os policiais que abordaram os jovens na UFAC expressaram uma postura que excedeu limites. Não satisfeitos em verificar se um possível “delito” estava sendo praticado, decidiram dar visibilidade ao que faziam. Queriam olhares, queriam, como recomenda a prática panóptica de poder na modernidade, iluminar possíveis espaços “obscuros”. Queriam olhares de estranheza em direção aos que acusavam, talvez ao modo como a vizinha, já idosa, olhou para Josef K., pouco antes de se tornar um criminoso sem crime. Os ditos policiais assumiram, então, a postura de julgadores, expressando o poder como máquina produtora de sentidos, atuando em todas as direções. Empreenderam um discurso perpassado pela “moral”, dicotomicamente dividida em boa e mal. Expressaram poder através de gestos: cabeça erguida, olhos fixos na câmera e a sentença: “maconheiros serão fichados para não conseguirem aprovação em concursos no futuro”. Sentiram-se senhores de destinos. Enviaram os que chamaram de “maconheiros” para terras malditas, como fizera Noé com seu filho Cam.

O que fez Itaan Arruda? Questionou o excesso, a ruptura da tênue linha que separa a “legalidade” do poder abusivo. Qual a reação de segmentos da população? A acusação: “defensor de maconheiro”. Todos falaram do jornalista como se o conhecessem profundamente, dividissem intimidades. Percebe-se, então, a emersão de um mundo regido por forças sem controle, por processos que decidem sobre a vida e a morte, que imputam culpa ou absolvição. Ninguém está livre disso.

Sou solidário ao Itaan Arruda, principalmente pela sua postura a contrapelo. Pelas rupturas que suas abordagens provocaram nas “normalidades”, mesmo que tenha passado por um verdadeiro linchamento. Quanto a administração superior da UFAC, especificamente a reitora Guida Aquino, ainda há tempo para uma tomada de posição. Para expressar que somos uma diversidade de sujeitos, modos de vida, culturas, etnias. Que não somos uniformes e nos esforçamos, pelo menos alguns, para respeitarmos esses muitos sujeitos sociais que vivem/convivem na UFAC. Que. Ao contrário do que diz o policial, não estamos no Guines Book por consumo de maconha, mas, que atendemos um grande contingente de jovens com cursos de graduação e pós-graduação, que formamos profissionais que atuam em várias áreas, que contribuímos, como iconoclastas, para a derrubada de mitos.

Por fim, visitando de novo o peculiar universo de Franz Kafka, observemos que, mesmo os que arrotam moralidades e se vem em uma trilha linear de “normalidades, podem passar pelo suplício de Gregor Samsa que, numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.

[1] Professor Associado na Universidade Federal do Acre


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