sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A ÂNCORA LANÇADA EM MARES DE ALEGORIA

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

Fato é que jamais ficaria parado. Não é do seu feitio. Importa locomover-se sempre. Esta, desde cedo, passou a ser a filosofia de alguém que se pensava andarilho, até que um dia, enfim, encontrou porto seguro, no meio da rua, boca aberta, madrugada insone, de cara para a lua, conversando com ninguém, depois de uma viagem interestelar em busca da felicidade e de um salário que se fizesse digno dos seus inimagináveis talentos. Lançou âncora num mar de alegoria e foi viver o primeiro dos seus muitos carnavais das ilusões mais reais possíveis.

Sonhava acordado com o dia em que, finalmente, seria o prefeito daquela cidadela amável. Contava as estrelas. Observava os pássaros. Lia muito os bons livros que a pequena biblioteca lhe oferecia. Uns o achavam quieto. Outros diziam dele ser um lerdo. Um dia ele disse ser apenas um garoto pacato, tranquilo, sem maiores exigências além do respirar, uma vez que nascera de família humilde, mas tinha boa escola, pais atentos para as questões que podiam interferir no futuro dos seus, e professores amáveis, na superior maioria das vezes.

De casa, depois de deixar o umbigo enterrado na soleira da porta, ele foi por aí afora, sempre com a vontade férrea de jamais tornar ainda mais difícil o problema que já não nasceu tão fácil. Esta, certamente, uma lição absorvida dos mais velhos, desde a mais tenra idade. É preciso ter calma, saber viver, agir conscientemente de forma a não prejudicar ninguém e não se atrapalhar com a vida.

Especialista nas esquivas e rápido no contragolpe, ele logo se fez um mestre do bem saber viver bem, uma vez que aprendeu cedo a desviar-se das conjecturas vagas e das insondáveis. Ao enxergar a primeira hipótese, buscava, já, vislumbrar outra e mais outra, ao fim e ao cabo de trinta segundos, posto não se ater a perder tempo com o improvável. A estrela da sorte apontava a direção, ele mexia na primeira pedra e era aquela exatamente a premiada. A busca das soluções poucas vezes se fez distante. Era partir para cima, com a cabeça fria, mas com o foco nas soluções mais rápidas e eficazes. Deu certo. E como deu...

Contudo, a vida, em algumas ocasiões, lhe fez cometer meros titubeios marcadamente humanos. Vezes por outras, andou na corda bamba. Errou e consertou o estrago. Casou umas tantas vezes, inclusive na justiça, uma vez. Pulou muros, cercas e gaiolas cujos pássaros alguém deixara fugir. O leão rugia atrás, no encalço, pega-não-pega, até o momento em que vítima se voltava para encarar o bicho de frente e arrancar-lhe as tripas pelas goelas.

Não apenas cometeu deslizes, como escorregou na realidade, no lodo ou na terra batida dos barrancos desta vida amazônica tupiniquim do Brasil de meu Deus. Foi seguindo assim, meio no rumo da venta, mas com sobriedade. Ganhou alguma ou muita experiência. Acertou a superior maioria dos lances e, como dizia a avó cearense de maus bofes, pra frente é que as malas batem, óxente!

Épocas outras mais se passaram tendo a noite depois do dia, naturalmente. Devagar ele foi experimentando e conseguindo ser experiente, tirando proveito da experiência dos amigos e até da dos inimigos.

Aprendeu que aprendeu. Estudou aqui e ali. Escreveu algumas coisas muito proveitosas, muito embora tenha certeza de que os leitores ou apreciadores da obra serão em número mínimo, uma vez que, nestes tempos encardidos, poucos hão de se interessar pelas viagens colossais através de teorias filosóficas. Ora essa!

Passaram-se alguns poucos anos. Eis que o intelectual, já enjoado de circular em torno de si mesmo, abandonou o teor epistemológico dos seus escritos, então, e passou a escrever algo o mais literário possível. Veio um romance histórico, de viagem e de aventura, que tem rendido algumas loas de amigos que o têm adquirido.

Sobre o aprendizado constante acerca dos segredos do viver, aos mais chegados, as perguntas eram feitas diretamente, olho no olho, e as anotações vinham logo mais, na calada da noite, quando apunha as suas impressões em artigos ou crônicas jornalísticas. Dos segundos, aqueles não tão amigos, as respostas eram canibalizadas na tocaia, de soslaio, na espreita, de forma a lhe render, preferencialmente, a crítica construtiva. É claro que alguns desses últimos houve por bem bloqueá-los, quando resquícios da imbecilidade crônica eram jogados no ventilador feito fezes tardias. Vá-se!

É óbvio que da vida ele ainda não aprendeu o prefácio ou sequer o índice. Não. De forma alguma. O manobreiro de palavras ainda não é um clássico, mas tão somente prima e se faz acompanhar por bons livros, pelos melhores filmes, pela música de qualidade superior e por mulheres de inteligência fluída, escorreita, graciosa, como a deusa resplandecente e de saias curtas que o acompanha nas noites de sexta pelos rendez-vous desta vida meio bandida, mas tão bem vivida. Eparrê Oiá!

A leitura do mês era Balzac. No dia anterior, antes da noitada, houvera lido algumas páginas do romance La Peau de Chagrin. Veio o sábado ensolarado, então, e a vitrola amanheceu mais tarde, às dez da manhã, tocando Mozart, Schubert e Vivaldi. Veio daí o moço que trouxe a cerveja - estupidamente gelada - e o poeta avacalhado passou a ouvir Caetano, Chico, Gil, Gal e Elis, a partir do meio dia.

Mais tarde, então, eis que aparece, saída de um romance de Mary Shelley, moça tosca, rude, pornográfica e próxima que se dirigiu ao aparelho musical e lá inseriu um disco de uma talbunda calypso. Ô raios! O poeta aparvalhado saiu da concentração etílica, se arreliou e bradou tão alto que toda a vila estremeceu:

- Ora essa! Eu passei meio século desta vidinha marota esquentando cadeiras de escolas e universidades e agora devo, a contragosto, ouvir músicas sem melodia e letras de poemas construídos a partir de rimas de quinta categoria. Saque essa coisa daí, agora!

Ela se foi para onde não deveria ter saído, nunca.

Passado o reboliço momentâneo, voltou o estado relax muito próprio do vate embolorado. Era, já, a vez de Martinho da Vila, uma figura humana cujo timbre musical já deixa o espectador ainda mais leve que o próprio.

Em verdade, depois da quinta década, os mais argutos veem que este não é um tempo bom para ficar velho. Percebem que não se pode envelhecer só porque há umas pequenas questões a serem resolvidas, muitas das vezes, problemas que não são exatamente os seus.

Neste tempo, é conveniente pensar com otimismo que a aposentadoria pode trazer momentos maravilhosos. Antes da praia, por exemplo, deve-se preocupar com uma atividade física de duas horas diárias e uma alimentação inteligente. Depois, o sol derramará boas doses de vitamina qualquer e, quem sabe, pode cair bem uma caipirinha ou dez chopes. Mais tarde, à noite - a Deus querer! - um rodopio nas melhores casas de samba. Por que não se encantar com uma bela cabrocha? Normal.

Nestes crepúsculos existenciais, o vate pachola prega que ter vivido muitas aventuras não significa dizer que se tem tanta experiência. Até porque muita coisa nunca é demais. Êpa-êpa, Babá!
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*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Nobel, Paim e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

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