sábado, 24 de agosto de 2013

Basta dizer que sou do Brasil

*CLÁUDIO MOTTA

No mundo encantado da poesia e do bem querer, conhecemo-lo por Rimbaud, o poeta tosco nascido no verdejante vale do Akiri. Versos escandalosos ou ensimesmados, então, personalizaram-se e houveram por bem nascer nos domínios de Girão, em um tempo em que o rio comandava a vida e a seringueira sangrava, porque a feriam de morte morrida todos os dias de fartas décadas.

A última viagem feita pelo poeta à Irlanda, ou Eire, como era chamado antigamente, rendeu um conto de estação aclamado pela crítica quase nacional. Têm dito por aí coisas fantásticas relativas aos voos rasantes que são dados por sobre pântanos em alagação, campos em flores e corações aos pedaços.

Ele conheceu gentes e monumentos de estilos e épocas bem diferenciados. Teria ficado restrito a Oslo, a Noruega, mas a achou com um gosto de bacalhau fresco ou ardido, que lhe fez ruídos nas narinas e pigarros nos tímpanos, ou vice-versa. (Só para enrolar o bom intérprete com o qual seria melhor nunca se arriscar, se é que é possível... Eles têm a alma ruidosa e dizem ver naquele, ou em outros escritos quaisquer, coisas jamais tratadas por Carlos Drummond de Andrade, ou pelo meu amigo poeta bêbado, o Charles Baudelaire, com quem o bardo tem o prazer de se engalfinhar em tertúlias alcoólicas na pérgula da Vivenda do Petrópolis, à beira da piscina, ou no Pato Tropical, o boteco escolhido por dez entre dez acreanos de boa origem, como aquele que, felizmente, nasceu em Xapuri, daí o condão poético melífluo e quase afrodisíaco, escrevamos assim.)

O Charles Baudelaire, meticuloso até as tripas, houve por bem perguntar os porquês de o vate haver ambientado o seu conto logo na tão longínqua Irlanda, como se ele tivesse alguma coisa a ver com o tempo, o espaço e os personagens ali descritos.

Para quem já esteve em Dublin, como o poeta, torna-se fácil responder. Trata-se de uma velha e muito bem cuidada cidade da Europa medieval, como tantas, tão bela e tão romântica quanto os braços curtos e magros e nus da donzela da segunda fila  - aquela florzinha  - do meu teatro de gozos; mais, muito mais aconchegantes que as pernas grandes e voluptuosas da morena sentada ao fundo do pavilhão das lindas tetas ou das belas artes.

Com a primeira anja, a poesia poderia fazer amor. Com a outra, os versos fariam sexo frugal, acasalamento, algo mais selvagem e bruto e trivial e suculento e rude, como a alma do seringueiro que repudiou a mocinha só porque a via enquanto lânguida demais. Lamentável para um rincão onde, naqueles tempos áureos da borracha, mulher era igual agulha na folhagem caída da castanheira hoje morta.

Como um Quixote, em sua viagem miraculosa, ele varreu quase toda a Europa. Esteve sob os encantos dos alabastros e das prostitutas  -   as almas gêmeas da primeira dama da safadagem romana, Messalina, de dezessete anos, casada com Claudius, o Imperador, de sessenta e duas voltas do velho ponteiro mundano cansado e jamais exaurido.

Como Barba Azul, ele ouviu as trombetas do inferno tocarem meio-dia em ponto, quando uma mosca amarela zumbiu-lhe ao ouvido dizendo ser aquela a hora exata de cair fora, porque corações despedaçados podiam colar-se e, numa revolta macabra, reclamarem o sangue das cem virgens devoradas pela lascívia do sedutor tarado.

E os séculos voaram vertiginosamente no rumo de cá. Chegaram, enfim, ao terceiro milênio.

O poeta envelhecido em tonéis de carvalho, qual vinho tinto, saiu por aí, mais uma vez, a manchar os vestidos alvos das musas de um tempo de recreio em média idade.

Um dia, então, novamente ensandecido sob o efeito do suco da cevada podre, aportou em Lisboa para uma revisitação depois de anos que já se iam distantes. Foi ainda à Cidade do Porto e à Vitória de Setúbal. Dali, seguiu o caminho mais uma vez para Málaga, Barcelona e Sevilha, na Espanha. Em trem acrobático reluzente, foi a Paris e, depois, a Nice e Bordeaux, onde, em um lupanar caro da zona portuária, conheceu dama de vida idílica com quem engendrou romance pinga fogo. Chamava-se Antoinette, uma lourinha em unhas, lábios e vestidos vermelhos e ancas descomunais, em cuja companhia impermeável viajou por cinco longos anos a conhecer a Europa pelo lado do avesso, o da sacanagem. O dinheiro era proveniente da jogatina, esporte no qual ainda é uma águia dos Alpes ou um gavião de Xapuri.

Em camisa onde o amarelo predominava sobre o verde, estava escrito Sou do BRASIL. À sua passagem, cavalheiros e damas, da plebe ou da aristocracia, faziam reverências e espalhavam sorrisos e votos de boas vindas.

O doidivanas troteava à cata de cassinos, inclusive, em Monte Carlo, Mônaco e Lichtenstein. Não havia tempo ruim. Tratava-se de um brasileiro festivo e feliz admirado, inclusive, por aqueles que para ele perdiam grandes quantias em euros.  

A dama de companhia explicava a todos em um sotaque arredio, uma vez que viajara do Brasil para fazer a Europa, como prostituta, ainda infanto ou juvenil,  na década passada:

- Piranha é mulher que transa para morder fundo, tirar o sangue e ganhar muito dinheiro. Já galinha é aquela que se apaixona pelos amantes e morre na pobreza... No Brasil é assim. Cada qual no seu cada qual. As pessoas são muito felizes. Não dizem que rico ri à toa? Pois é. Os brasileiros são mesmo muito abonados, inclusive, espiritualmente. – No que era apoiada pelo poeta tosco:

- Além do Carnaval, do futebol e do samba, as mulheres do Brasil são as mais belas do mundo. Afora o fato de serem muito prendadas e atléticas nas alcovas tropicais, são esposas muito dedicadas, como é o caso de Antoinette, a minha amada que hoje se diz francesa.

Perguntaram-no, então, acerca do que fazia ou no que trabalhava para manter um padrão de vida tão luxuoso, uma vez que morava em uma garçoniere ampla com vistas para o mar de Bordeaux. Sem nenhum pejo, ele arremeteu:

- Sou brasileiro e, como tal, aprendi truques e fórmulas que me fazem viver bem sem ter que fazer tanto esforço. Afinal, os estrangeiros que vêm para a França para fazer a parte suja e pesada do trabalho que não é feito pelos franceses são os turcos do norte da África, para quem qualquer gorjeta já vale toda uma vida de privações e preconceitos.

O meu herói sabia onde dormiam as andorinhas e onde se divertiam os magnatas, os banqueiros e os armadores ricos do sul europeu. Lá estavam eles e para lá é que o poeta tosco rumava. Sem muitas cartas na manga do fraque, só algumas, ganhava do primeiro para dividir o lucro com o segundo, com quem combinara tramóia irremediável que não levantava suspeita. Vivera no Rio de Janeiro e aprendera as artes marciais, as da capoeira e as do amor, além da arte do trambique, esporte no qual os brasileiros são campeões antes de iniciada a primeira partida do campeonato carioca.

Um dia, então, o poeta Rimbaud foi perguntado por que folgava tanto enquanto se divertia pela Europa afora. Foi extremamente incisivo ao responder:

- Não esquenta não, mermão... Basta dizer que sou do Brasil!

__________

*Cronista: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br  -  Acesse e opine!

Nenhum comentário: