domingo, 22 de novembro de 2015

UM BOM DIA PARA NASCER MAIS UMA VEZ

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO

Naquele inverno, uma vez mais, juntaram todos os cacos de todas as horas diuturnas e partiram céleres rumo ao já conhecido rincão das letras pululantes e das ciências que fazem jorrar ouro e bom futuro em cascata. Uma oportunidade a mais nunca será demais, principalmente, se for aproveitada por espíritos que estão sempre dispostos a ultrapassar mil obstáculos a cada dia. Já na gênese, todos eles eram assim.

Foram-se.

Lá, a casa era bem cuidada, de duas janelas de folha dupla e localizada num logradouro com nome de jardim. Cheios de esperança, ali, eles desembarcaram os poucos pertences que trouxeram da origem, inclusive, o principal deles, um bem espiritual tornado físico, de três anos, braços fortes, olhos perspicazes, jeito de inteligente, cara de sério, fímbria de vencedor, moreno claro e bonito saído à mãe.

Nos primeiros dias na cidade acolhedora, compraram móveis e utensílios nas casas baianas. Depois, cuidaram de fazer matrícula em uma academia de ginástica, no centro velho da cidade paulista cujos habitantes, ou, talvez, boa parte deles, se fizeram quase parentes, uma vez que crianças e casamentos foram apadrinhados pelo casal de acreanos. Nunca eles fizeram tantos amigos. Mogi-Guaçu é, realmente, uma cidade de pessoas de bem, muito bem.

Veio, então, o Carnaval sem graça. Coisa de paulista. Passou, enfim.

Já na semana seguinte, antes da obrigatoriedade acadêmica finalidade principal da aventura, eles, enfim, efetivaram a primeira matrícula do menininho sisudo, na escolinha arco íris.

As mesas da escola, onde sentavam quatro crianças, eram, naturalmente, pequenas e baixas, assim como as cadeiras. Dois meninos vizinhos passaram, também, a estudar no mesmo local.

Um dia, então, o rapazinho acreano de três anos achou que poderia ter uma mesa todinha só para ele. Como era crescido e os demais um tanto magros, os empurrões afastavam a todos. No fim da tarde, aconteceu o inesperado. Veio um garotinho que, vendo os bíceps fortes a tomarem de conta de toda a mesinha, fez uso de uma caneta e feriu o mais mimado dentre todos, no braço.

Foi um incidente único, felizmente. Três anos depois, a academia de ciências permitiu que todos tomassem o caminho de volta para o Acre de tantas saudades.

Chegado em Rio Branco, o rapazinho, agora com seis anos, já alfabetizado, passou a frequentar uma escola cujos proprietários eram paranaenses. Os sotaques dos diretores e da professora eram bem parecidos e ele foi se sentindo muito à vontade numa sala de aula onde as outras crianças falavam um tanto diferente. Só depois é que percebeu que os circundantes não mordiam o T e nem mastigavam o R. Então, ele passou a imitá-los e, em dois ou três meses, já falava o mais puro acreanês.

Alicerces haviam sido construídos. As bases estavam montadas. Números e algoritmos fluíam-lhe livremente à cabeça, já. Todavia, passados sete anos, ele se viu na contingência de transferir-se para outro colégio, agora, de propriedade de uma família catarinense cheia de metas e plena de bons resultados alcançados a partir de muito trabalho. Mais uma vez, o agora rapazola estava no lugar exato e na hora certa.

Passaram-se mais anos, uns quatro. Professores de todas as disciplinas diziam dele ser um aluno acima das expectativas. Os pais, orgulhosos, acreditavam. Era real.

No terceiro secundário, matutino, o reforço veio com os estudos pré-vestibulares realizados, concomitantemente, à noite. O êxito não se fez esperar. O guri bacana, então, foi aprovado entre os primeiros para o curso de engenharia elétrica da universidade federal. Em casa, houve comemorações iguais às do dia em que ele nasceu com cinco quilos de peso e cinquenta centímetros de tamanho. Ah, coitada da mãe!

Os dias foram de relativa pacificidade na grande casa do saber. Vieram tempos de greves extremamente prejudiciais aos interesses de quem está interessado em muita coisa. Poucos profissionais do saber quase descumpriram o contrato social. A maioria honrou o papel tão bem desempenhado por anos de cátedra. 

A física e a matemática reverberavam da mente privilegiada do rapaz. Colegas de sala iam à sua casa em busca de esclarecimentos que eram passados de forma gratuita e competente.

Veio o tempo da composição da monografia. Ele aprendera a escrever no secundário. Pouquíssimos adendos foram observados no texto. Na defesa, enfim, o aplauso da banca e a nota bem acima do esperado.

O repórter de um jornal da televisão perguntou-lhe de onde teria vindo tanta inspiração para o trato com disciplinas tão intrincadas para a grande maioria das pessoas. Ele foi enfático e disse que, desde muito pequeno, percebera a sua habilidade com os números e o pai lhe havia ensinado os melhores atalhos e caminhos.

Uma turma. Sete cabeças. Uma moça loura de olhos claros entre os formandos. Brilho, emoções à flor da pele, aplausos, a felicidade mais pura em letras garrafais. Sonhos com terras distantes, viagens de estudo duradouras. A ciência talvez até os absorva por lá. Nunca se tem certeza, mas sabe-se que os melhores colégios são como asas que os pais emprestam aos filhos para os maiores voos das suas vidas marcantes. Depois, voltarão, na graça de Deus!

Para eles, engenheiros eletricistas, aqui vai um poema em soluços.

BATER DE ASAS

De repente, o estágio inicial do conhecimento

Da busca da melhor escola é chegado o momento.

O futuro exige siso, sonhos, planos e atitude

Assim é a parca vida e que Deus te ajude

Afinal, é só a esperança que nos faz sonhar.

Todos os esforços são feitos por anos a fio

A atenção integral na busca do bom perfil

Afinal são os filhos o nosso maior fruto

Neles a confiança é o grande reduto

Já não mais é tempo próprio de esperar.

Enfim, os ícaros oriundos das nossas entranhas

Buscam no horizonte azul forças estranhas

E batem asas lépidos, fagueiros, confiantes,

Rumando para o devir que sonhamos antes

É este um tempo de muito e muito voar.

Então o sol é bem forte e lhes derrete a cera

Até do que prevíamos pouco ou nada se perdera

Agora eles voam muito alto, quase inatingíveis

Os donos dos nossos sonhos quase impossíveis

Chegaram, enfim, onde não conseguimos chegar.

Voam muito eles agora de par em par com o vento

Nos pais deixam dias sombrios tempo cinzento

A saudade se faz crua atroz e agora é tormento

O amor vive dias, meses, anos e a todo momento

A vaga certeza de que um dia ele voltará.

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*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, à venda nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

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