sábado, 18 de janeiro de 2014

À moda dos clássicos

José Cláudio Mota Porfiro*

Para os justos e mansos de coração, como eu, na visão dos que apreciam as viagens colossais deste eu poético insano e mundano, está agora a se fechar apenas uma porta grande e pesada, bem fadada, com aldravas e dobradiças de ferro fundido, esculpido. A partir de então, abrir-se-ão outros acessos, ingressos e janelas do meu tempo de vidro temperado, blindado, travestidas em fumê azul claro como o céu da minha vidinha atrevida, mas precavida e com bastante sentido.

Deixem-me voar e não tenham pena do meu bater de asas ritmado e constante. A questão física não será o problema. Estou rijo, apesar dos janeiros corridos. Não sou louco. Não sou Ícaro. Não sou Dédalo. Não há cera a colar as minhas penas. O sol em mim nada derreterá, muito menos este juízo pachola que entra em campo, agora, mais uma vez, para ganhar a partida aos dez do primeiro tempo, de goleada, ou ainda no primeiro combate, por nocaute, sem recuar, sem cair, sem temer, como bem quis o Chico Mangabeira, meu nobre poeta do belíssimo hino dos acreanos.

Voltemos, então, no tempo. Giremos o ponteiro do relógio no sentido anti-horário. Voltas e mais voltas. Alguns bilhões delas. Inspiremo-nos nos clássicos ainda no nascedouro da filosofia.

Lembremos, sem pestanejar, uma passagem da história da civilização, quando, na antiguidade clássica, os gregos iluminaram a Terra com o seu conhecimento fantástico a propósito do mundo e sobre a vida do homem errante sobre a terra, os seus sonhos, os seus mitos, os seus medos e as suas projeções rumo ao futuro da Humanidade.

Os gregos, realmente, se tornaram o povo mais sábio da Terra no período dito clássico. Eles não tinham o que fazer, porque dispunham de escravos para a execução das tarefas mais pesadas, mais sujas, como a limpeza dos excrementos dos mais inteligentes e mais bonitos e mais pensativos e mais gays que o mundo não viu, como nunca antes ou depois. 

Não, Helena, irmã minha! Eu não atirei a minha arte no lixo e muito menos de lá ela foi tirada.

Vejo a arte, no conceito mais amplo, ser desperdiçada por dois motivos. Na primeira situação, vi o garoto Des’Acre passar dias para compor um quadro, coisa de um metro quadrado, como um Matisse. Veio a exposição e uma senhorinha futilzinha perguntou-lhe o preço da peça. Ele, em suas longas bermudas tal e qual o gato de botas, muito humilde sussurar:

- Quinhentos reais! - Ao que ela fez comentário atroz:

- Muito caro, caríssimo. Deixa por cem!

O artista ficou enfastiado e saiu sem dar respostas à gazela. O crime hediondo foi cometido quando a senhorinha regateou o custo de uma obra de arte. Gente de alguma sensibilidade não pergunta o preço da produção de um artista e muito menos faz comentários tão desairosos. Fica ou se vai, e pronto.

A minha arte se encaixa numa segunda situação. Ela simplesmente foi sufocada no berço, com um travesseiro de capim. Eu não tinha arrimo, como não tive pais ricos. Concursado, dependurei-me às comodidades do servidor público e larguei tudo em um baú velho que, felizmente, não foi levado pelas alagações do Rio Acre, ou da alma que se manteve em sã consciência e absorta nos seus afazeres de empregada federal. No meu caso, a arte foi postergada, uma vez que tempo não havia para a escrita do que quer que fosse, além de redigir ofícios calamitosos e justificar projetos cujo destino foi quase sempre não sair do papel.

Fiquei manietado pelo sistema que não ampara o artista, mas tão somente tira de perto dele qualquer vestígio que queira significar incentivo. Embora alguma melhoria hoje se desenhe no ar, este ainda não é um país construído por homens e livros, como bem queria o senhor dono do Sítio do Picapau Amarelo.

Dia desses cometi uma sandice. Por ser muito chegado à música clássica, disse à sócia ser um clássico. Ao que ela fez comentário interessante:

- Você tem algum talento, sim, com as letras, mas para a culinária, não. Jamais tente aproximar-se de um fogão. Ele pode dar choque ou até porrada mesmo.

Em verdade vos digo, minhas senhoras. Ela gostaria que eu fosse como o Vinícius, que fazia comidinhas pra depois do amor. Se eu caio nessa, aos sábados, lá estaria eu de barriguinha encostada produzindo quitutes em cozinhas repletas de utensílios sujos e condimentos exóticos demais, como o manjericão e a alfavaca. Jamais! Do episódio, então, compus poesia meiga e gentil em homenagem aos que fazem da culinária uma fonte de prazer. Fico grato.

Eis, enfim, que me é chegada a hora da aposentadoria. Os demais agentes, ainda no exercício do desiderato, vinculados às instituições públicas de ensino superior, passarão a fazer o trabalho que eu tão mediocremente fazia, ou ainda faço. Não que eles sejam cativos gregos. Eles são escravos, sim, de um regime que lhes paga uma ninharia mensal e deles, na maioria dos casos, exige muito suor, bem mais que sangue... Só de pensar em tolerar um chefe mandrião que não sabe da missa um terço, a veia literária latejante salta dos músculos ainda bastante rijos. Benza Deus!

Como querem as estatísticas mórbidas divulgadas por estudos bem fundamentados, não capitularei cinco anos depois da aposentadoria. Tenho amplo domínio das mais modernas tecnologias. Lido com o facebook e o whatsApp com grande desenvoltura, apesar da mediocridade de alguns personagens que mourejam por ambientes às vezes um tanto opacos.

Conheço os meandros do Word. Faço algumas viagens pelo Excel. Redijo alguns textos bem próximos do aceitável. Leio agora os Cinquenta tons de cinza, escrito pela senhora E. L. James.  Usando gíria antiquada, estou na crista da onda, e assim por diante.

Em outras palavras, os neurônios estão sendo bem treinados e os hormônios ainda estão aos gritos e às cambalhotas. Numa síntese frouxa e pouco apressada, não terei Alzheimer. Nem Parkinson, e pronto!

Ah, sim, bela senhora do setor de pessoal! Não me chame de inativo, não apenas pelos hormônios que ainda me são um fogaréu, mas pelo respeito que me deves pelo tanto que fiz em favor ou em desfavor da nossa Academia, mesmo em tempos bicudos, como os vividos até poucos meses.

Esqueçam que um dia vendi aulas de uma qualidade abaixo do ra-zoável, principalmente, nos últimos dez anos, quando os líderes fecham os olhos e não se permitem ver que a indisciplina domina o âmbito das escolas e deixa a grande maioria dos professores medrosos diante de comportamentos terríveis de alunos que os agridem, até fisicamente, nas salas de aula do sistema público. Vão lá. Falem mais alto com um aluno musculoso ou com uma aluna irritadiça. Sintam de perto a realidade. Busquem soluções. O barco das relações escolares afundou e a autoridade não viu. Uma pena.

Eu, agora, de uma vez por todas, tornar-me-ei um clássico, sim, à moda dos gregos, por assim dizer. Terei, enfim, tempo para meditar, para filosofar, para versejar, até que me venha a chance da volta ao redor do sol de número oitenta. Melhorarei a minha produção em formato de poesia. Publicarei o meu romance O inverno dos anjos do sol poente, agorinha mesmo a caminho da editora. Escrito também já está outro livro, o Lama poética descalça e nua. Seguirei em frente contando das minhas reminiscências em meio ao alvoroço da vida que fica, a cada dia, mais moderna e mais a jato, em uma obra pré-intitulada Lembranças ao principado. Memorial da Terra. Este, um projeto bem fluído cujo objetivo é resgatar a memória de alguns homens e mulheres do Acre que foram tão úteis à terra, mas as suas histórias, com eles, têm ido para os túmulos silenciosos. Há um outro plano, já bem esboçado, cujo título é Conexões em titânio. Neste, será travado um diálogo bem sacana a respeito de respostas a serem dadas, por homens e mulheres sem papas na língua, a perguntas escorregadias, ou cheias de sentidos dúbios. E tem muito mais destes sonhos que a Divina Providência há de me dar fôlego para tanto.

Como o Luiz Vaz de Camões, um renascentista, n’Os Lusíadas, peço, nesta hora calma, que Deus me dê força e arrojo para cumprir empreitada tão séria, em nome de alguns muitos dos meus conterrâneos que de mim esperam muito mais do que eu posso dar.

Que assim seja. Amém!

*Cronista nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.

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