domingo, 30 de novembro de 2008

Poema do domingo

A criança que fui chora na estrada

Fernando Pessoa

I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo?
Quem errou A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem Amanhã não veremos.
Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros.
Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus!

Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou?
Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

Fernando Pessoa. Escritor e poeta português, considerado um dos maiores expoentes da língua de Camões, a quem tem o seu valor comparado.

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