Josafá Batista
O rio Acre, como faz há milênios, recebeu nesse ano um grande volume de chuvas e transbordou. Não é inédito, mas provoca uma espécie de transe amnésia histérica: poucos lembram que todo ano é a mesma coisa, o que muda é a intensidade do fenômeno.
"Rio Acre desabriga 20 famílias", "Defesa Civil distribui alimentos e água potável para desabrigados", "nível do rio sobe", "nível do rio desce", "prefeitura distribuirá hipoclorito para famílias atingidas pela enchente", "volta para casa aumenta riscos de infecção por leptospirose, micoses e outras doenças" - são estas, dentre muitas outras, as manchetes dos jornais nessa época do ano.
Mas por que não questionar: essas famílias voltam para os bairros alagadiços só para sofrer, todos os anos, as mesmas dificuldades?
Elas voltam porque são pobres. Todos os programas habitacionais do governo para pessoas em áreas de risco fundam-se em um único pressuposto: transferir as famílias para regiões mais altas. Esquecem que, nos locais de origem, elas têm a mercearia onde compram fiado para pagar no fim do mês (quando sai o dinheiro da aposentadoria, da pensão ou do trabalho braçal). Têm a escola próxima para os filhos estudarem. Têm água potável, encanada ou "enganada" (os bairros alagadiços, por serem muito baixos, alcançam os lençóis freáticos com muita facilidade por meio de poços, construídos geralmente em mutirões).
As famílias não deixam os bairros alagadiços porque constituíram nesses locais uma rede de auxílio mútuo compatível com a sua baixa renda. As casas construídas pelo governo, até onde sei, sequer levam esses pontos em consideração. Pior que isso: submetem as "vítimas da enchente" (expressão que é outra violência de ordem simbólica):
- à mesma escassez de água potável sofrida pela classe média em outros bairros (e como essas regiões são muito altas, perfurar um poço ou "cacimba" a picaretadas é uma aventura quase sempre impossível, além de perigosa).
- a ausência de sistemas de saúde e de educação que tenham - no mínimo - os mesmos problemas de superlotação e escassez de fichas que existiam nos bairros de origem.
- a inexistência de mercearias ou pequenos estabelecimentos que aceitassem vender fiado e receber no final de cada mês.
- a falta de um policiamento ostensivo para inibir crimes contra o patrimônio, tráfico de drogas e desentendimentos comuns em qualquer comunidade.
Diante de tudo isso vale perguntar: o governo - de todas as esferas, municipal, estadual, federal - tem realmente políticas públicas de habitação popular? Ou apenas distribui casas (quando distribui)? Os documentos do principal programa do governo federal, "Minha Casa, Minha Vida" a que tive acesso não citam qualquer preocupação com as questões levantadas, no máximo citam a principal preocupação dos órgãos financiadores: a renda. O governo estadual sequer possui um site relacionado a seus programas habitacionais.
Certo, pra não dizerem que só reclamo darei alguns pitacos:
- Façam estudos sobre as formas de sociabilidade nos bairros alagadiços, as estratégias de sobrevivência das "vítimas da enchente". Conheçam as hortas caseiras ou comunitárias, as criações de galinhas, patos e porcos; confiram como os poços/cacimbas servem, às vezes, para as famílias de uma rua inteira durante o verão. Vejam como as pessoas se deslocam quando precisam de atendimento médico-hospitalar, suas dificuldades e limitações. Tentem compreender a importância do transporte público e das bicicletas, no trajeto das crianças para a escola ou para o culto/missa dominical. Enfim, tentem assimilar o básico: pessoas não são objetos para que sejam jogadas sem qualquer planejamento em outra região da cidade.
- De posse de todos esses estudos e diagnósticos sociais, tentem reaplicar o que puder ser reaplicado nos locais de destino, nesses conjuntos novos que o governo planeja entregar para famílias em áreas de risco. Partindo da compreensão básica de que a renda é muito baixa, pode ser mais produtivo compreender que um modo de vida que requer uma renda maior sempre será inexequível para os novos moradores. O resultado sempre será a volta para casa por conta própria. Acompanhada ou não da venda do imóvel.
- Por fim, e aproveitando uma "carona" no projeto de pavimentação com tijolos de todas as ruas da cidade prometido pelo governador Tião Viana (PT) na campanha eleitoral, será relativamente fácil fazer o seguinte: utilizar a mão-de-obra ociosa desses novos moradores para empregá-la em olarias públicas que podem ser construídas pelo próprio governo. Para evitar problemas com a Lei de Licitações e até com a Lei de Responsabilidade Fiscal, bastaria fomentar nos bairros (com auxílio da associação de moradores) um sistema de mutirões que reunissem todos esses pais e mães de famílias para participar de toda a nova cadeia econômica: desde a produção de tijolos até a pavimentação propriamente dita. É bom que se acrescente um importante detalhe: é nos bairros alagadiços de Rio Branco onde se encontra a argila de melhor qualidade para o fabrico dos tijolos - Taquari, Triângulo, Ayrton Senna, são alguns que me vêm à mente no momento.
Se essas questões forem levantadas, a títulos de problematização e cobrança pela nossa imprensa e pelos políticos realmente interessados em soluções para o povo, estaremos a meio caminho de transformar o "Alaga-show" anual que temos em uma política exemplar de promoção de cidadania.
Sugiro ainda que os colegas jornalistas encampem essa idéia, se a considerarem exequível. Em fenômenos sociais de larga magnitude é que se torna possível compreender que o papel da imprensa não é meramente narrativo. Se a imprensa é o "quarto poder", sua função é social. É ser o contra-poder instrumentalizado pelo povo, não mera transmissora de fatos. É dar voz aos que não têm voz porque a política no capitalismo concentra e se fecha em si mesma tanto quanto o próprio capital. Seu compromisso, portanto, é com o povo.
Josafá Batista é sociólogo e escreve aqui.
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