Se vivo fosse, meu velho pai estaria completando, neste 1º de junho, oitenta e três anos de vida. Morreu precocemente, aos 54, no ano de 1982, num dia 24 de agosto que jamais esquecerei. Não era meu pai biológico, mas criou-me desde o primeiro ano de vida como se meu sangue corresse em suas veias e o dele nas minhas. Um exemplo de vida, um professor fantástico, sem nenhuma escolaridade, mas com toda sapiência necessária para mostrar o caminho certo a ser trilhado - suas curvas, pedras e obstáculos.
Chamava-se Antônio Firmino da Silva. Seringueiro ainda menino, aos 11 anos de idade já cortava algumas estradas pela necessidade de ajudar no sustento de mãe e irmãos. Era órfão de pai. Depois se tornou comboieiro, mercador da floresta, responsável pelo aviamento dos seringais Novo Catete e Porto Franco. Trabalhou muito para a extinta firma Abib Kalume Ltda. Tinha a ambição de ficar rico com aquele trabalho insano, duro, de sol a sol. Porém, seringueiro que era, não possuía a má fé nem a ganância comuns a quem, nesse ofício, conseguiu acumular riqueza.
Chegou a abrir uma pequena mercearia na cidade, mas ficar sentado atrás de um balcão não combinava com o seu modo de vida. Amava o seringal, adorava lidar com os animais, burros de carga a quem tratava como se fossem pessoas. Sua inseparável montaria se chamava Boneca, uma mula antipática e cheia de mimos. Minha mãe costumava dizer, brincando, que Boneca era melhor tratada que ela mesma. Lembro-me de um burro velho, já no fim da vida, que foi batizado de Januário, em homenagem ao pai do cantor Luís Gonzaga, o Rei do Baião, de quem meu pai era grande admirador. Só não sei dizer se o sanfoneiro ficaria contente com tão bem intencionada manifestação de apreço.
Morreu lá, nos campos do Novo Catete, lugar de onde não imaginava sair para viver na cidade. Antes, comprou um terreno em Xapuri, em 1978, para que eu e minha irmã, Francisca, pudéssemos estudar. Construiu a casa, comprou as mobílias, geladeira, sofá e uma televisão em preto e branco da marca Telefunken - uma das poucas coisas que prendiam a sua atenção na cidade. Ligou “luz elétrica”, instalou telefone e cavou um poço. Mas não pensou jamais em fixar residência ali. Era um hóspede dos finais de semana. Voltou para o Novo Catete, seu verdadeiro lar, onde tombou no meio do campo, quando apanhava o comboio de burros para mais uma viagem ao “centro”.
Um colapso fulminante tirou a vida daquele homem que eu, aos 11 anos, imaginava imortal, uma rocha indestrutível, um amparo impenetrável. Comecei ali, no momento de dor e de uma perda da qual jamais me recuperei totalmente, a compreender a vida na sua mais verdadeira e dura essência. Compreendi também que a morte não é capaz de separar as pessoas e que há, sim, vida após a morte; que mesmo morrendo fisicamente permanecemos vivos naquilo que deixamos de exemplo, de trabalho, de valores ou simplesmente de gestos, por mais simples que sejam. Bastam que sejam sinceros e que fiquem marcados de forma especial e indelével.
A morte de meu pai e a sua incomunicabilidade nesses 29 anos passados são para mim razões fortes para continuar acreditando na existência de Deus, por mais que os pragmáticos da ciência me digam que elas, as razões às quais me apego, existam para que eu creia exatamente no contrário. Há algo grande e incompreensível aos olhos da razão que talvez somente na morte seja devidamente explicado. Apego-me a essa certeza para poder continuar vivendo, lutando firmemente para deixar aos meus filhos, que carecem de exemplo e conselho, pelo menos um pouco daquilo que o senhor Antônio Firmino, um simples seringueiro, me deixou um dia. A confiança de que vale a pena continuar acreditando em um mundo melhor e mais justo.
2 comentários:
Bela crônica, carregada de amor e saudade. Parabéns Raimari. Um forte abraço.
Obrigado, Altino. Saiu do coração. Grande abraço e sucesso, sempre.
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