Francisco Gregório Filho
Ciúme. Aparecera na lista dos três grupos reunidos em Xapuri: um composto só por mulheres, outro, só por homens, e um terceiro, de constituição mista: homens e mulheres.
O Sindicato Rural de Xapuri promovera um encontro para discutir a participação das mulheres nas atividades organizadas pela entidade. Depois de um dia de discussão, os grupos apresentaram em seus relatos finais uma listagem de problemas a serem enfrentados para garantir maior mobilidade do público feminino nas ações articuladas pela associação da classe. O ciúme constou das três listas. Os três grupos o apresentaram como um dos itens a serem tratados nas reuniões. Participara do grupo misto e acompanhara as questões reveladas como dificultadoras do envolvimento das mulheres e dos homens no sindicato. As mulheres reclamaram dos ciúmes dos homens, e os homens fizeram a mesma reclamação.
O encontro fora pensado por Chico Mendes, na tentativa de encontrar caminhos para estimular a participação política das mulheres. Mulheres seringueiras que trabalhavam com os maridos e a família no corte da borracha na floresta. Chico Mendes convidara alguns profissionais para acompanharem essas discussões. Fui um desses convidados.
Inicialmente ficara intrigado com a discussão sobre o ciúme, mas, com o desenvolvimento dos debates, fui-me envolvendo, ouvindo, instigando os relatos pessoais dos conflitos gerados pelos casais. Não é que o tema se demonstrara pertinente mesmo? Como dar enfrentamento a questão tão complexa e surpreendente, surgida a partir dos depoimentos de trabalhadores da floresta?
No jantar, uma amiga que participara do grupo feminino narrou um aflito relato: uma mulher, ainda jovem, num determinado momento das discussões, levantou-se, dizendo que precisava falar sobre sua história recente. Já há algum tempo, participara de uma reunião no sindicato e no intervalo, após o almoço, assistira com outras mulheres, ali mesmo no sindicato, a um filme pela televisão, desses da Sessão da Tarde, em que apareciam dois jovens enamorados se acariciando.
Numa das cenas, a jovem passava a mão no peito do rapaz. Então a mulher, ficara com um “esquentamento” no corpo. Já em casa, vira o marido subindo a escada com o corpo molhado após um mergulho no rio. Voltou a sentir o “esquentamento”, saltou sobre o marido e passou as mãos nas bolhinhas d´água sobre o peito. O marido a afastou, perguntando onde ela tinha prendido aquilo, se fora no sindicato. Ela ficara na sua “quentura” interna, pensando sobre o que estava lhe acontecendo. Resolvera, então, pedir conselho a uma amiga. A amiga lhe dissera que ela estava com o pecado. Aquele “esquentamento” havia de ser pecado. Numa outra oportunidade, vira o marido novamente com o corpo molhadinho debaixo de chuva, cortando lenha no quintal, subitamente o “esquentamento” a incendiara de desejos e, sem conter o impulso, fora para o quintal sob a chuva e, aproximando-se de seu homem, dera-lhe um abraço, acariciando seus cabelos. O homem a afastara com uma pernada e, gritando, perguntara mais uma vez:
- Onde você aprendeu isso? Foi no sindicato?
Agora ela percebia que o marido andava desconfiado e com ciúmes de sua participação nas atividades do sindicato. E o “esquentamento” não passara; ao contrário, vinha aumentando e a deixava angustiada e com medo do pecado.
Ela queria conversar sobre essa “quentura”; queria saber se era pecado mesmo. Minha amiga contou que fora um alvoroço só na reunião; umas mulheres confirmaram que era pecado sim, era o demo; outras protestaram, dizendo que pecado, que nada, e uma delas chegara a pronunciar a palavra tesão, o “esquentamento” era tesão.
Gostaria de ter presenciado tal discussão. Fato é que o ciúme mobilizou mulheres e homens para os debates. Interessante! Não pensara em me deparar com fato tão inusitado num encontro sindical.
Um grupo de teatro de Xapuri, que trabalhava com o sindicato, se propusera a montar uma dramatização sobre o assunto para aprofundar o debate entre homens e mulheres. O grupo também selecionou um repertório de histórias tendo como tema o ciúme e ainda faz muito sucesso por lá.
No final do dia, fomos jantar um cuscuz cozido no leite de castanha, uma delícia. Um licor animou o jantar, cuja sobremesa foram castanhas cristalizadas com cobertura de chocolate. Depois do jantar me deu um “esquentamento”; e voltei de Xapuri com minha “quentura” ainda mais atiçada. Gostaria de ter noticias daquela mulher e seu “esquentamento”.
O contador de histórias Francisco Gregório Filho nasceu em Rio Branco, no Acre. Formado em artes cênicas, pela UNIRIO, atuou como ator e diretor. Foi gestor de programas e projetos culturais nas áreas de música, rádio e teatro. Na década de 1990 começou a se dedicar às questões da leitura, tendo sido um dos organizadores do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, implantado em 1992, na Biblioteca Nacional (1992 a 1996). Desde então desenvolve oficinas de formação de contadores de histórias para educadores sociais, estudantes e profissionais de diferentes áreas. O artigo acima foi escrito em 2005.
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