José Cláudio Mota Porfiro
O Sororóca é um desses cabras cheios de bons préstimos. Bom para com todos e muito menos para consigo próprio. É solteiro há uns vinte ou mais anos. A mulher, uma negra fornida que só gosta mesmo é de luxo e vida mansa, ele perdeu num jogo de cartas marcadas por ela mesmo, para um tal Coroné João Gabiru, dono do Polopongó, um seringal do Médio Amazonas. Num acerto de contas de fim de fabrico, ele ficara devendo, segundo o próprio, mais ou menos, um conto e um canudo fora o dinheiro miúdo para o seringalista que já frequentava desde algum tempo as alcovas e as poucas vergonhas de Odete, a ex-esposa. A quantia relativa à dívida ele nem tinha certeza porque, como na superior maioria dos casos, não sabia ler um ó sentado na areia. E os elementos débito e crédito, como sempre, haviam sido anotados à lápis em um borrador que logo desapareceu.
Então, combinado ficou que a mulher luxenta ficaria com o Coroné Gabiru e ele poderia ir-se embora para onde quisesse com as contas zeradas. Homem de mais de metro e oitenta, maranhense, desconfiado que só ele mesmo, voltou pra barraca já sem a nêga com a finalidade de buscar uns poucos pertences a que tinha direito, menos a espingarda e a poronga que já não eram dele. Apanhou então um velho Smith & Wesson, o revólver escondido debaixo da barraca com o qual havia chegado à colocação e, de madrugada, arribou aí pelas três. Querendo ser mais esperto que a cabroeira do patrão, pegou o varador e fez um atalho por dentro da mata de forma a não mais passar pelo barracão do Coroné, como se o homem fosse um santo e quisesse apenas a mulher vistosa e cheia de quentura.
- Dexastá... Na manhecença do dia, na travessia do igarapé Tijuco, ouvi foi só o pipoco e caí na água. E vieram mais dois tiros e mais outros três. O inverno ainda mal tinha chegado e o rebojo da água era grande... E foi o que me salvou... Mergulhava aqui e saía lá acolá, no rumo de baixo, isto, até mais ou menos umas dez horas da manhã, segundo tirei pela posição do sol.
O Coroné João Gabiru mandara tocaiar o Sororóca e, desde a tarde do dia anterior, atrás da sapupema de um samaúma, lá já estava o Tonico Gago armado até os dentes com duas repetições e mais um revólver calibre 38. Muito tempo depois, ele soube que o bandoleiro ficou sem ganhar os quatrocentos réis prometidos porque a sua orelha e os seus pissuídos - do alvejado - permaneciam nos seus devidos lugares.
Em três dias, chegou à sede do Seringal Ôco do Mundo dizendo que, durante uma caçada, havia sido atacado por uns índios de cara preta e se perdera na mata tentando escapar. Deram-lhe comida e pouso. Para a sorte da vítima, o seringalista era homem bom e, acima de tudo, lá no Polopongó, ele havia sido dado como morto, e ninguém se importou em fazer buscas pelo corpo de um dizinfiliz como o Sororóca. Em retribuição aos favores recebidos, passou quinze dias rachando lenha e, depois, foi recrutado para levar de balsa, através do rio abaixo, com outros companheiros, uma partida de duas mil pélas de borracha em direção à cidade de Oriximiná. Aí chegando, ouviu falar do Acre, uma terra onde se cata dinheiro com um cambito. E se foi.
Ao Sororóca, já na Boca do Lago, deram uma colocação da linha do meio - central - a apenas uma hora de viagem, com três estradas para cortar. É o bastante para quem vive sozinho e não deixa de ir olhar a sua conta, semanalmente, agora sob a minha responsabilidade. Há saldo, sim.
Segundo diz o próprio, todo janeiro, aí pelo dia quinze, ele ruma para Xapuri e lá tira o atraso e a reima de macho, enfiado nos aposentos de uma Etelvina não-sei-das-quantas, de onde, aí pelo dia trinta, ele volta tendo lá deixado alguns víveres, quatro ou cinco cortes de chita, uns sapatinhos brilhosos e água de cheiro. Desejo comprados na A Limitada, a grande loja dos portugueses recém conhecidos meus.
- Ano passado, ela ficou dois meses por aqui. Tem quarenta e oito anos, mas já tá toda encolhidinha, murchinha de tanto uso. Não sabe sequer cozinhar. Só gosta mesmo é de limpeza, de ficar cheirosa o dia inteiro, de pintar os beiços e de xamegar... Ela me chama de meu nêgo!...
Dona Nenzinha, a patroa do Boca do Lago, é mulher bem simples, educada e sem pedantismo. A história do Sororóca já é do seu conhecimento desde alguns anos. Segundo ela me conta, este é mais um exemplo dentre milhares em que as mulheres são tomadas dos seringueiros pouco produtivos pelos patrões.
- Aqui perto mesmo, no Seringal Iracema, havia um cabra ainda com uns vinte e dois anos - Laelço, parece que era o nome dele - e já com dois filhos pequeninos, de um e de dois anos, e uma mulher muito formosa de nome Raimundinha. Ele, metido a bonito, havia roubado essa dona e chegado ali para trabalhar duro. No fim do ano, isso, há uns cinco anos, na hora do ajuste de contas, o homem chegou ao barracão e o guarda-livro observou que ele tinha produzido apenas quatrocentos e poucos quilos de borracha em um ano inteiro de trabalho. E viu mais: estava com um débito muito maior que o crédito obtido pela produção anual. Estava devendo cento e cinqüenta réis, o que poderia ser pago depois de uns três anos de muito trabalho. Como? Ele, a companheira e os filhos teriam que continuar comendo, consumindo, fazendo mais contas... Aí, chamaram o patrão que, sem dó nem piedade, ajeitou a situação que já vinha sendo costurada há dias. É que havia um tal Zé Bento, homem de quarenta anos, solteiro, trabalhador demais, que ameaçara ir-se embora porque não agüentava mais viver sem mulher... O homem produziu naquele ano mil e cem quilos de borracha!... Uma fortuna! Na mesma hora veio a palavra final. Laelço ficaria no barracão consertando uma cerca, cuidando do roçado, rachando lenha, carregando água, caçando, pescando e batendo campo, trabalhando feito um fi-da-peste, por um ano, findo o qual ele foi mandado embora campiar macaco em outra freguesia. Era, sim, um vagabundo! A tal Raimundinha, muito formosa, e os menininhos, foram para a companhia de Zé Bento, o seringueiro arrojado e próspero que vivia numa colocação arejada, limpa, com um gadinho até.
E Dona Nenzinha continuou o relato:
- Hoje em dia, dizem, eles vivem muito bem. E foi mais ou menos o que vi no ano passado quando passaram por aqui para a procissão de São Sebastião, em Xapuri. Ela toda faceira, bem vestida, os meninos chamando o Bento de pai... É assim, homem que não presta tem que dar a vez pros outros... Há tanto homem bom por aí por esses seringais precisando de uma mulher que lhe faça companhia nas horas de ócio. Eu digo pra todo mundo que Seu Pergentino, o patrão do Iracema, tomou uma decisão muito mais que acertada, inclusive, para os negócios do seringal que precisam, sim, é de gente com sangue no olho e que não se borre de medo na hora do esturro da onça. Ora, pois!
Continue lendo, no blog do autor, o capítulo XXX do romance O Inverno dos Anjos do Sol Poente.
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