Marina desafia o improvável
Rafael Gomide, Último Segundo
Marina Silva tinha 28 anos quando o PT lhe propôs ser candidata a deputada federal constituinte, em 1986. Nunca concorrera a cargo público, e ninguém acreditava que ela fosse ganhar a vaga. O objetivo era eleger deputado estadual o presidente da CUT do Acre, Chico Mendes. O partido queria dar imunidade parlamentar ao líder seringueiro, sujeito a processos e sob ameaças pela atuação contra derrubadas da floresta. Marina era braço-direito do seringueiro como vice-presidente da CUT e seria também sua companheira de chapa.
No cartaz vermelho, sob o slogan “Oposição pra valer”, aparecem lado a lado com Chico Mendes. Nenhum dos dois se elegeria, porém Marina teve mais votos que ele. Foi a quinta colocada, só que o PT não obteve legenda suficiente para uma cadeira no Congresso pelo Acre.
Em outubro, a senadora Marina Silva (PV), com uma história com semelhanças e quase tão improvável quanto a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tentará seu vôo mais alto, acima das seringueiras da floresta de onde extraía látex na infância analfabeta. Disputando a sucessão de um ídolo, pelo PV, contra o partido onde fez sua história, pretende levar o legado de Chico Mendes como bandeira principal e convencer o Brasil da importância do Meio Ambiente. Enfrenta a ex-ministra da Casa Civil Dilma Rousseff (PT), e o ex-governador de São Paulo José Serra (PSDB), candidatos que saem à sua frente em intenções de voto, segundo as pesquisas, e contam com muito mais tempo de TV e recursos financeiros.
Parece uma candidatura de Dom Quixote, mas Marina parece cultivar improbabilidades. Ela lança seu nome à Presidência pelo PV no domingo 16 de maio em uma festa em Nova Iguaçú, na baixada fluminense.
Desenvolvimento com a floresta em pé
ao clandestino Partido Revolucionário Comunista (PRC) e, nascidos em seringais no meio da floresta do Acre, tinham em comum o amor pela mata. Chico era a voz da CUT em Xapuri, onde vivia, e no interior do Estado, e Marina na capital, Rio Branco. Quando havia os antológicos “empates”, espécie de piquetes para impedir a derrubada de árvores, Marina se unia ao colega. Ótimo articulador em conversas de pé-de-ouvido, mas péssimo orador em público, Chico Mendes contava com a ajuda dos discursos emocionais e inspiradores dela para incendiar os sindicalistas.
Chico Mendes apresentou uma idéia que revolucionou a cabeça de Marina, passou a acompanhá-la e a influenciar sua atuação política: a noção de “desenvolvimento com a floresta em pé”, o hoje chamado “desenvolvimento sustentável”. Ele propunha a criação de reservas extrativistas para preservar a floresta amazônica e as terras indígenas. “Para o Brasil foi uma novidade e para ela também”, disse o santista Fábio Vaz, marido de Marina que nessa época já a namorava. O conceito era considerado “romântico” até pelos petistas. A concepção da esquerda passava apenas por lutar pela terra, não por manter a floresta viva. “Chico estava muito à frente do tempo”, disse Fábio.
Em dezembro de 88, o sindicalista foi assassinado na porta de casa – uma semana depois de completar 44 anos. Marina tinha 30.
As doenças como companheiras
Maria Osmarina da Silva nasceu no Seringal Bagaço, a 70 km de Rio Branco, em 8 de fevereiro de 1958 e antes dos 6 anos já trabalhava cortando seringueiras para extrair látex. A mãe, Maria Augusta da Silva, deu à luz 12 filhos, mas três morreram meninos. A vida na floresta era dura para as crianças. “Meninos de seringal sempre viviam adoentados, os bichinhos. Ela sempre foi muito obediente, gostava do serviço. Mesmo doente, cortava seringa, com malária, nunca falhou, mesmo cansada das pernas”, lembra seu Pedro Augusto da Silva, o pai.
Marina contraiu cinco malárias, hepatites e leishmaniose. Essas doenças deixaram seqüelas que a acompanham até hoje e tornaram a saúde da senadora frágil e inspiradora de cuidados diários. O efeito colateral dos remédios para tratar leishmaniose foi uma contaminação por mercúrio e outros metais, que a deixaram sujeita a alergias a comidas e cheiros. Durante a gravidez da filha mais nova, Mayara, 18, quase morreu. Passava mal, não tinha um diagnóstico preciso nem podia se medicar, por conta da gravidez. “Quase ficou em coma e dormia no meu colo, com medo de morrer”, conta o marido, Fábio Vaz.
Como não havia escola no seringal, Marina só aprendeu a fazer as quatro operações e a ver horas no relógio aos 14 anos. Aos 15, quando a mãe morreu de repente, ainda não sabia ler nem escrever. No ano seguinte, contraiu hepatite e foi se tratar na cidade, onde se alfabetizou pelo Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) e fez supletivo.
Por influência da avó paterna, resolveu ser freira e mudou-se em fevereiro de 1976 para a congregação das Irmãs Servas de Maria Reparadoras, em Rio Branco. Lá viveu um ano e cinco meses, mas desistiu da idéia por falta de vocação.
Entrou na faculdade de História da Universidade Federal do Acre (UFAC), onde aprofundou sua formação política, iniciada em comunidades eclesiais de base. Passou a integrar o clandestino Partido Revolucionário Comunista e o Partido dos Trabalhadores (PT) e juntou-se a um grupo de jovens que depois ficaria conhecido no Acre como “os meninos do PT”. Entre eles, além de Marina estavam o atual governador, Binho Marques, e o antecessor, Jorge Viana. “No PRC, a gente achava que ia começar a fazer a revolução pelo Acre, acho que ainda influenciada pela Guerrilha do Araguaia (movimento do PCdoB nos anos 70 na selva amazônica)”, explicou Júlia Feitosa, amiga desde a faculdade e hoje no governo do Acre. “Mas nunca pegamos em arma, acho que eu desmaiaria”, ri ela, que tem história parecida com a de Marina: nascida em seringal, atuação na igreja católica, faculdade de História, PT e PRC.
Os dois maridos e o “irmão gêmeo”
Junto com Binho, descrito por alguns como “irmão gêmeo de Marina”, Júlia acompanhou de perto o nascimento durante a faculdade dos dois primeiros filhos, Shalon, 29, e Danilo, 27. O marido de Marina, Raimundo Souza, não apreciava a atuação política da mulher. Começou a beber muito, ela temia ser agredida, a relação se desgastou e terminou.
Aproximou-se do paulista Fábio Vaz, sete anos mais novo, que estudara em colégio agrícola e se mudara para o Acre. Atuava na política estudantil e em projetos de construção de escolas em Xapuri, com o sindicato de Chico Mendes. Sócio de uma horta privada, ele levava verduras e legumes frescos para Marina, que, por conta das restrições de saúde, precisava de uma alimentação balanceada. “O que me atraiu nela foi a beleza e a simpatia. Admiração eu tinha por outras pessoas, mas foi a beleza, essa relação homem-mulher”, explicou Fábio, com quem é casada até hoje e com quem teve mais duas filhas.
Professora da rede estadual, ela entrou para o sindicato e a CUT. Em 88, animada pela experiência ao lado de Chico Mendes, elegeu-se a vereadora, com a maior votação de Rio Branco. Logo no primeiro salário, criou uma confusão na Câmara. Estranhou o pagamento de alguns benefícios, denunciou o ocorrido e depositou em juízo as verbas, para ela ilegais. “Infelizmente a idéia foi minha. Só ela dizer o valor do salário já foi uma revolução, porque ninguém sabia quanto ganhavam vereador, prefeito, governador. Mas o mundo caiu sobre ela, era ofendida nas sessões, eu me arrependi por isso. Inicialmente, ela depositou em juízo, depois a Justiça decidiu que era legal; nós achamos que era imoral, e ela passou a doar”, conta Fábio.
A morte de Chico Mendes
Em dezembro do mesmo ano, Chico Mendes foi assassinado na porta de casa. A comoção chamou a atenção do país e do mundo para a questão ambiental. Como discípulos e “herdeiros”, Marina e os “meninos do PT” ficaram responsáveis por levar adiante o legado ambiental e social do sindicalista. Até hoje, o gabinete de Marina no Acre tem posters do sindicalista e livros sobre ele.
Marina se elegeu deputada estadual e assumiu em 91. Em um vôo pelo interior do Estado, grávida, sentiu a pressão baixar e chupou uma bala de mel. Quase entrou em coma. Descobriu ter hipoglicemia reativa, causada por problema no pâncreas, sobrecarregado pelo mau funcionamento do fígado, devido às hepatites da infância. Tinha hipoglicemia e não podia tomar açúcar. Foi levada a São Paulo para se tratar e morou um ano na casa da sogra, em Santos.
Provavelmente por causa da contaminação por metais, tinha alergia a quase tudo, e a reação podia ser asfixia, rinite, sinusite, perda da visão, com forte enxaqueca. Desmaiou inúmeras vezes perto do marido. Por isso, precisa ter uma alimentação regrada e come de três em três horas. Não come carne vermelha, em hipótese alguma, açúcar, café, leite, nada gorduroso, refrigerante, álcool. Sua dieta inclui muita salada e fruta, soja, proteína, grãos, peixe e frango. Aprendeu a comer regularmente, de pouco em pouco. Há cinco anos está bem.
Contrariando o PT, em 1995 tornou-se a mais jovem senadora da história do país, aos 36 anos. Reelegeu-se com um terço dos votos do Acre, em 2002.
Com a eleição de Lula, foi nomeada ministra do Meio Ambiente, tendo como meta conter o desmatamento da Amazônia. Criou um plano de prevenção e aperfeiçoou o sistema de detecção de desmatamento em tempo real e criou duas reservas extrativistas em regiões de conflito no Pará. Perdeu quando o governo liberou o plantio de soja transgênica. No segundo mandato de Lula, aumentou o desgaste interno no governo, com a criação do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), que prega o desenvolvimento econômico, o que a pôs em frequentes choques com Dilma Rousseff, responsável por tocar o programa. O principal motivo era o atraso nas licenças ambientais para grandes obras. Saiu em maio de 2008, quando o comando do Plano Amazônia Sustentável (PAS) foi atribuído a Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos).
Em 2004, Marina se tornou evangélica, e passou a frequentar a Assembleia de Deus. Segundo amigos e ex-assessores, a religião é hoje parte importante de sua vida. A senadora leva a Bíblia aonde vai. “Ela não lê a Bíblia, estuda”, disse o marido, também evangélico. “Marina é radicalmente cristã, mas não é uma fanática religiosa nem discrimina ninguém. É a única pessoa que conheço na política que reza pelos inimigos e adversários e não guarda rancor. Ela faz política com amor”, disse Toinho Alves, amigo há 30 anos e ex-assessor, um dos “meninos do PT”, hoje aos 50.
Quem a conhece afirma que a religião não influencia a política em aspectos programáticos, mas a devoção é tanta que a amiga Júlia Feitosa acredita que Marina possa até largar a política pela religião. “Acho que ela pode virar missionária.”
Mulher, nascida na floresta, filha de seringueiros, evangélica, negra, Marina Silva aposta mais uma vez contra todas as chances, que pode subverter a lógica e repetir a trajetória de Lula, carregando o legado de Chico Mendes.
Em tempo: A pré-candidatura de Marina Silva será lançada neste domingo (16) no Rio de Janeiro. O ato será realizado durante a pré-convenção do PV na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Dessa forma, a ex-ministra do Meio Ambiente formaliza uma pré-candidatura que há meses se mostrava bastante ativa, com uma maratona de entrevistas e participações em debates e programas de rádio e TV por todo o país.
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