20 anos depois do assassinato do líder seringueiro, o desmatamento alcança 6,3% da área total de conservação federal. É tarefa de apenas um fiscal combater as queimadas e a pressão da pecuária, que acabou com a maior parte das seringueiras da região.
Fotos Alan Marques/ Folha Imagem
Domingos Florentino da Conceição recolhe látex das seringueiras da Resex.
MARTA SALOMON
Enviada especial da Folha de São Paulo a Xapuri (AC)
"Sou o homem de um milhão de hectares", apresenta-se, sem exagero, José Carlos Nunes Silva, 43 anos. Ele é o único fiscal de um território de seis vezes o tamanho da cidade de São Paulo, a reserva extrativista Chico Mendes, no Acre. Vinte anos depois do assassinato do líder seringueiro, símbolo da defesa da floresta, a área desmatada na unidade de conservação federal que leva seu nome cresceu 11 vezes e o gado, que não deveria estar lá segundo o projeto original, chega a quase 10 mil cabeças.
O desmatamento alcança 6,3% da área total, segundo o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia). Apesar da queda recente no ritmo das motosserras, o percentual se aproxima do limite máximo de desmatamento admitido e -mais importante- coloca em xeque as chances de o extrativismo impedir o abate da floresta.
"É difícil controlar esse negócio; se não for com mão de ferro, isso tudo acaba", diz o fiscal. É tarefa dele conter as queimadas e, sobretudo, a pressão da pecuária, que arrasou a maior parte das seringueiras e dos pés de castanha que havia no entorno da Chico Mendes e pressiona suas fronteiras. Na reserva, o rebanho já conta com 8.431 cabeças, de acordo com o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Acre, em levantamento feito a pedido da Folha.
O plano de manejo ainda em implantação tolera a abertura de apenas 15 hectares de floresta por família (o suficiente para 15 a 30 cabeças de gado), mas o cadastro de vacinação deste ano identificou criações com até 648 cabeças na reserva. O excedente está sujeito a confisco. Os responsáveis por irregularidades podem ser expulsos. Um cálculo preliminar estima que 15% dos ocupantes da reserva estejam nessa situação.
“Não vai ser fácil o ajuste", avalia Renato Ferreira Ribeiro, presidente da associação dos moradores e produtores da reserva Chico Mendes. "Alguns poucos não têm gado", diz.
Boi pirata
O ministro Carlos Minc (Meio Ambiente) reconhece na pressão da pecuária sobre unidades como a Chico Mendes, tanto uma alternativa de sobrevivência na floresta como resultado das dificuldades do Estado para zelar por áreas protegidas. "A gente sabe que tem muito boi pirata lá, até por causa da pobreza", afirma.
A criação de novas unidades de conservação é tema de divergências no governo. Minc, defensor da idéia, enfrenta a oposição dos ministros Reinhold Stephanes (Agricultura) e Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), coordenador do PAS (Plano Amazônia Sustentável). Essa oposição se dá em nome do suposto excesso de restrições ao agronegócio na região da Amazônia.
O baixo preço da borracha e a dificuldade de escoar a produção durante anos levaram quase ao abandono das árvores que Chico Mendes e outros seringueiros defendiam com seus próprios corpos, contra a ação de fazendeiros, nos chamados "empates" dos anos 70, uma forma pacífica de impedir os desmatamentos.
No ano passado, com a produção em declínio, o extrativismo na floresta amazônica foi responsável por apenas 4.000 das 110 mil toneladas de borracha natural produzidas no país. Outras 230 mil toneladas tiveram de ser importadas.
Salário mínimo
"Da seringueira não se vive mais não, se não tem gadinho, não dá", justifica Creviano Pereira de Lima, cuja família mantém 100 cabeças de gado na colocação Gafanhoto. Filho de ex-seringueiro, o rapaz não se anima, por ora, a abastecer a fábrica estatal de preservativos recém-inaugurada em Xapuri. Alega atrasos nos primeiros pagamentos de R$ 4,10 por quilo da borracha. Esse preço inclui o pagamento de R$ 0,70 por serviços ambientais.
Próximo do lugar onde Creviano caçava, com uma espingarda calibre 22, Domingos Florentino da Conceição corria para recolher o látex das seringueiras que havia cortado nas primeiras horas do dia. Ao final do mês, calcula Domingos, o "leite" extraído renderá cerca de um salário mínimo.
Dentro da reserva, o desmatamento ainda é menor do que fora. Entre os seis municípios que abrigam a Chico Mendes em seus territórios, apenas dois (Assis Brasil e Sena Madureira) registram índices de desmatamento inferiores aos 6,3% registrados pelo Sipam na reserva. Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os municípios de Xapuri, Brasiléia, Rio Branco e Capixaba perderam entre 21% e 47% da floresta.
O abate de árvores já superou o limite legal de 10% no emblemático Seringal Cachoeira, cuja desapropriação foi o pivô do assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1988, a mando do antigo dono da área, Darly Alves da Silva. O presidente da associação dos moradores do Cachoeira, Raimundo Monteiro, atribui os 13% de desmatamento à "teimosia" dos assentados: "Gado tem bastante".
Tia de Chico Mendes, Cecília Teixeira, 82, ainda mora no assentamento. "Aqui e acolá cortam a árvore e vendem o leite, mas se vive mais é de plantação, vende uma cabecinha de gado, quase todo mundo cria", diz.
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