Romar Belling
Poucas paisagens talvez sejam tão impenetráveis à imaginação humana quanto a da Amazônia. Não bastasse o gigantismo natural da floresta, com seus segredos e seu pouco caso em relação a tudo o que o homem queira chamar de dominado, há a questão óbvia do difícil acesso. E por difícil acesso compreenda-se a própria tentativa de nomear, em língua padrão, o que nem sempre é nomeável, remetendo, de algum modo, ao instante fundador, quando navegantes precisavam encontrar parâmetro a fim de explicar ao destinatário (no assim dito mundo civilizado) o que, afinal, havia sido visto em terras estranhas.
Com a Amazônia ainda é assim. Por mais que o ser humano, em sua tentativa de aproximação, tenha avançado pelas bordas da floresta, afugentando paisagens e habitantes, ela permanece incógnita. E se para botânicos, aventureiros, viajantes, especialistas de todas as áreas, descrever ou entender esse colosso verde tem sido desafio dos mais hercúleos, não seria tarefa menor na literatura.
Até para a imaginação algumas coisas têm limites, e isso depois de o homem ter zanzado pelo universo nas asas da ficção científica. A Amazônia (como os confins dos oceanos) ainda apavora. Poucos escritores, mesmo dentre aqueles que têm a floresta no sangue, sentiram-SE encorajados a tomá-la como tema. O amazonense Márcio Souza está entre eles. Fala da Amazônia para um Brasil que, em vertigem, permanece um tanto distante daquele que constitui seu maior patrimônio natural.
Mas é conveniente render-se a outro autor, estrangeiro, a fim de embeber-se na magia amazônica. A sugestão, nesse caso, é o chileno Luis Sepúlveda (foto). A via de contato? Nada menos que uma pequena novela, de leitura rápida, e que convidará a várias (sempre enriquecedoras) releituras. Um Velho Que Lia Romances de Amor (Ática, 94 p.) começa como se imagina que deva principiar uma jornada Amazônia adentro: tateando, com respeito, pincelando a alma com a imponência da selva do lado equatoriano. E não poderia ser mais apropriado o ponto de partida: o vilarejo de El Idilio.
Uma citação real do livro é o seringueiro Chico Mendes, de quem Sepúlveda foi amigo. Como lembra na apresentação, em dezembro de 1988, na mesma época em que a novela estava sendo lida pelo Júri no Prêmio Tigre Juan, em Oviedo, na Espanha (e que afinal recebeu), o ambientalista era assassinado em Xapuri, no Acre. A circunstância fez com que o autor dedicasse a obra a Chico Mendes. No campo político, o escritor foi (e ainda é) militante: integrava, por exemplo, a guarda pessoal do presidente Salvador Allende quando da deposição deste, em setembro de 1973. Mais do que dono de privilegiada imaginação, Sepúlveda detém outro mérito nesses tempos atuais: em se tratando de história, como se diz, ele é testemunha. Esteve lá.
O AMOR É UMA LEITURA O universo no qual mergulham os personagens de Um Velho que Lia Romances de Amor, liderados pelo soturno Antonio José Bolívar Proaño (o velho), não admite arrogâncias, requer não menos que entrega absoluta. Isso significa: familiaridade com a solidão, com a desesperança, com o desencanto em relação à devastação ambiental na maior riqueza natural do planeta e em relação à aridez do coração humano.
Ao ingressar na floresta, como lembra Sepúlveda, nas malhas de seu fazer literário, é preciso começar tudo de novo. O contato com o mundo exterior fará cada vez menos sentido, perderá completamente as bases. A sutileza da obra está justamente no fato de que a transição, a mediação, o último refúgio de integridade entre esses dois mundos se dará pela via da leitura.
É lá nos confins da Amazônia que um velho, para preservar seu afeto e sua identidade, começa simplesmente a ler. E lendo, preenche lacunas (de amor, de ternura, de esperança) que, no contexto, nada mais poderia recuperar, e que a civilização há muito havia sufocado. É, sem dúvida, uma maravilhosa metáfora que revela o poder da leitura na massa da própria literatura (espécie de espelho de múltiplos reflexos).
E o que é mais significativo: justamente num ambiente onde, ao que tudo indica, a leitura de nada parece servir na prática. Mas é por ela que se resiste. Onde houver um leitor, sobrevive (renasce, revigora-se) aquilo que remete ao inabarcável, ao imponderável, ao indomável, à floresta de desejos, de medos e de sentimentos que, no final das contas, cresce em cada um de nós.
Trecho
“Como fazia parte do primeiro turno, o velho apanhou a lamparina.
Seu companheiro de vigília o olhava, perplexo, percorrer com a lupa os signos ordenados no livro.
– É verdade que você sabe ler, compadre?
– Um pouco.
– E o que está lendo?
– Um romance. Mas fique quieto. Se você fala a chama se move, e as letras ficam dançando.
O outro se afastou para não incomodar, mas era tal a atenção que o velho dispensava ao livro que não suportou ficar à margem.
– De que trata?
– Do amor.
Diante da resposta do velho, o outro se aproximou com renovado interesse.
– Não me goze. Com fêmeas ricas, fogosas?
O velho fechou o livro de repente, fazendo vacilar a chama da lamparina.
– Não. Trata-se de outro amor. Do que dói.
O homem ficou decepcionado.”
Natural de Ovalle, no Chile, Luis Sepúlveda está em vias de completar 60 anos em 4 de outubro. Reside em Gijón, na Espanha. Um Velho que Lia Romances de Amor foi lançado no Brasil pela Ática, em 1993. Em 2005, ganhou o selo da Relume-Dumará (132 p.). A ele seguiram-se Mundo do Fim do Mundo (145 p.), de 1997, e Diário de um Killer Sentimental (125 p.), de 2006, ambos pela Relume-Dumará.
Fonte: A Gazeta do Sul
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