João Baptista Herkenhoff
Em outros tempos o
cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado
por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados –
poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, a partir da Constituição
de 1988 e sobretudo do Movimento Constituinte que precedeu a votação da
Constituição, modificou substancialmente este panorama.
O mundo do Direito
não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurídica.
Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderíamos
chamar de "universo jurídico". Daí a legitimidade da
participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos ou
profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como
profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o
Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito
porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo,
como juiz foi, em Pernambuco, meu avô – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse
avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascínio sobre mim que determinou a
escolha profissional que fiz.
Meu caminho, nas
sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos íntimos.
Sempre aprendi que
o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é
verdadeiro. Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o
regime do arbítrio.
Não obstante a
aceitação de que o "regime de legalidade" é uma conquista do Direito
e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juízes
devam devotar à lei um culto idólatra.
Uma coisa é a lei
abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a
condição humana.
À face do caso
concreto a difícil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a
Justiça.
Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.
Há uma hierarquia
de valores a ser observada.
Não é num passe de
mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o
caminho é difícil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado
da cultura simplesmente jurídica.
O jurista não lida
com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é
através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes
escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além
dos silogismos.
Da mesma forma que
os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o
estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões
jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito
uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos num mundo
de intercâmbio, diálogo, debate.
Se quisermos servir
ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se
que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e universal.
João Baptista Herkenhoff, 79 anos, residente no Espírito Santo,
magistrado aposentado, é professor e escritor.
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